22.11.05

Sou Eu Mesmo

Eu poderia gastar uma quantidade razoável de palavras agora, sobre como quando decidi postar em um blog, objetivava versar sobre outras coisas que não minha própria vida medíocre, como fazem a maioria das pessoas (e talvez também gastasse ainda mais palavras versando sobre como é impossível não falar da própria vida medíocre, e no fundo ao falar de outras coisas estou apenas me expondo de maneira pretensamente diferente, etc.). Nunca achei que fosse, novamente, por-me a público da maneira que estou prestes a por. Mas, assim como tenho por hábito enrolar muito, também o tenho de condenar aquilo que fiz ou virei a fazer um dia (ou não seria isso um dom humano genérico?). É o que Carla vive dizendo, pelo menos.

Ah, sim, Carla. Já chego lá.

Então talvez você esteja no momento se perguntando, leitor, porque passei mais tempo que o normal distante deste blogue (embora eu não saiba bem o que seria o normal, no caso), ou ainda porque, em meus breves momentos de regresso, tenha resolvido apenas citar ou tergiversar sobre Sandman. É que, e eis aí outra destas coisas que também achei que não viesse voltar nunca a escrever ou dizer... bem.

Estou apaixonado.

Digo, mesmo, de verdade, como não me apaixonava desde a adolescência. Pra dizer a verdade, de certa forma, como nunca me apaixonei. Consigo dizer isso agora. Acho que preciso dizer: tenho certeza de que nunca me apaixonei da maneira como estou apaixonado agora, e é por isso que estou escrevendo.

"Mas havia dias em que, ao chegar em casa, encontrava-me em tal estado, que a felicidade de estar apaixonado junto com a agonia da impotência diante do fato tinham de sair de mim de alguma forma."

Auto-citação... é o cúmulo, mas funciona. É assim que me sinto agora.

Tem só três semanas - minto, menos. Faz 17 dias hoje. Eu mal consigo acreditar que seja tão pouco, mas é. Foi quando fui apanhar o exemplar de "Casa de Bonecas" com ela.

Eu já a conhecia: Carla foi minha aluna em uma matéria extra no Doutorado, coisa de um ano atrás. Achei-a bonita, e só - à época, como tem sido há muito tempo, estava com outra(s) moças; e absolutamente, miseravelmente só e estranhamente desejoso de permanecer assim. Agora somos colegas na licensiatura. E tanto então como agora, nunca pude deixar de me entreter com suas estranhas escolhas de rumo profissional, visto que ela, que é formada em física, resolveu faz pouco mergulhar de cabeça no historicismo. Nem queiram saber sua matéria na faculdade de educação.

Nos reencontramos no início do semestre. Eu tinha superado minha fase "crise do XI cântico" e estava muito feliz em basicamente ser gentil com todo mundo, o que é uma raridade, vindo a jogar conversa fora a troco de nada. Ela tirou proveit0: o mais fácil mesmo ainda é jogar conversa fora com uma moça bonita e inteligente. Muito espertamente deixamos gancho para repetir a coisa; Sandman tendo sido mencionado, ela usou este específico. Deixou uma nota na minha sala, marcando de me entregar o 2° volume, já que eu só tinha lido o primeiro, e ela tinha certeza de que eu adoraria o resto. Então...

Aconteceu. Tenho respeito mínimo ao que deverá restar de minha privacidade, e não vou dizer exatamente como. Talvez porque eu também não entenda direito. Mas aconteceu: abri os olhos e estávamos nos beijando. E ela perguntou:

- Você está rindo?

E eu estava sorrindo, sorrindo enquanto a beijava.

- Que bonitinho.

E então ela sorriu. Outro colega disse-me há poucos dias que Carla costuma vender o seu sorriso caro - logo, eu devo estar milionário, porque vejo-a sorrindo mais do que de qualquer outra forma. Talvez ela dissesse que, comigo, é outra pessoa - eu certamente diria que a recíproca é verdadeira.

Li "A Casa de Bonecas" antes de dormir, naquele dia, e pouco depois de acordar, pedi a ela que levasse todo o resto para o trabalho.

- Todos os oito TPBs?!
- Todos.
- Tentando me impressionar, Pisandro?

Ela me chama de Pisandro. É a terceira pessoa no mundo a fazer isso. Deixei escapar que tinha sido meu apelido na conversa do dia anterior, ela cismou. Ainda estou tentando descobrir um apelido pra ela.

Li tudo em dois dias.

Estou morto de sono, não tenho dormido direito. Talvez esteja estranhando o colchão alheio - não tenho dormido sempre aqui em casa. Aliás, minto: tenho dormido muito pouco aqui em casa. É uma maluquice, nem 3 semanas, e a bem dizer já não sei se o que estranho é mesmo o colchão dela, o meu, a ausência do cheiro do cabelo dela quando estou só, ou o bater irritante do meu coração a todo momento, meu estômago embrulhado. Meu estômago sempre pagou por meus amores, e nos últimos anos esteve achando que teria sossego, imagino. É ele quem insiste em avisar que eu estou fadado a me foder todo.

É engraçado, estou dizendo isso feliz da vida: não tem jeito, morto de amores do jeito que estou, não tem como eu não me foder; e não me importo, não ligo, não estou nem aí. Antes quebrar a cara do que... bem, não quebrar.

"- Duvido que eu tenha mudado tanto.
- Como quiser, meu irmão."

Mas mudei. Nós freqüentemente usamos a palavra "sempre" ao falar de personalidade, o que é paradoxal. Dizemos: fulano é sempre o mais teimoso, está sempre meio apaixonado, é sempre muito frio. Mas amanhã eles ficarão flexíveis, calculistas ou inconseqüentes, e ainda assim os chamaremos pelo mesmo nome e diremos que são eles mesmos.

... Preciso dormir.

9.11.05

Obra de Seu Tempo

Sabe, pode não ser do seu conhecimento, mas sou, ou fui, ou tendo a ser, um sujeito tremendamente preconceituoso com relação a mídias diversas. Não sou fã de cinema, escultura, fotografia, pintura; absorvo, mas não sou fã. Teatro, música, escrita, depende. Tive uma fase de muita leitura de revistas em quadrinhos, que ainda assim sempre achei bobos, e contra os quais tive um acesso de fúria um pouco mais velho, rapidamente me livrando dos números antigos de Homem-Aranha.

Provavelmente por isso demorei tanto a por as mãos em Sandman. Também pode não ser de seu conhecimento, mas só fui por as mãos num TPB de Preludes & Nocturnes, importado mesmo, em 2000, e não foi ele que me fez mudar de opinião sobre HQs, embora eu tenha visto alguns trechos muito interessantes, especialmente o epílogo, "Sound of Her Wings", que tinha trechos daquele belíssimo poema egípcio que jamais imaginei que veria numa revistinha. Mas fiquei curioso, era bom, e diziam que era tão maravilhosamente maravilhoso; dito e feito, este ano finalmente tive acesso à série toda. Lê-la gerou duas categorias de opinião.

A primeira categoria, logicamente, é de que é muito, muito bom. É excelente, maravilhoso, sensacional, tudo isso, e o é em vários níveis. É maravilhoso pelo uso único de sua mídia (os variados estilos de desenho, posicionamento dos quadros, os balões, fontes...); pelo seu estilo de diálogo e narrativa, mesclando o fantástico ao mundano; pela sua mitologia e pela sua mescla de mitologias... Mas o mais impressionante mesmo, o absolutamente único, o que o distingue de qualquer outra coisa já feita no gênero, é sua coerência. Neil Gaiman não deixa um único ponto sem nó, e consegue lidar com um número absurdo de tramas e subtramas que são, quase inexplicavelmente, ao mesmo tempo um todo totalmente coerente, sempre variações do mesmo tema. Não há uma única estória, um único dos inúmeros contos soltos, que esteja lá à toa. E é maravilhoso perder-se nas inúmeras "referências a si mesmo" da série, ou mesmo nas referências a outras coisas, e tentar buscar, em todos os momentos e pistas veladas deixadas ao longo dos 75 números, a solução do enigma de Morpheus, que, em última instância, não tem nenhuma explicação clara: por que ele toma sua decisão? (e, conseqüentemente, porque o fazem, com suas respectivas decisões, Destruição, Hob Gadling, Shakespeare, Lúcifer...).

Perceber tudo isto me levou à segunda categoria de opiniões: Sandman não é só muito bom. Ele é um marco de sua época. Posso estar equivocado por mil motivos, mas a princípio, escutem o que estou dizendo: daqui a muitos anos, esta série será lembrada como uma das maiores e mais típicas manifestações de seu tempo. Por que exatamente digo isto?

Pode ser mania de historiador, mas comecei a pensar isto quando reparei que a data em que Sonho fica aprisionado praticamente coincide com o "breve século XX" de Hobsbawn, antecedendo-o por um ano (16-88, ao invés de 17-89). Besteira? Não creio - embora não duvide - que Gaiman tenha escolhido este período propositalmente, especialmente pq ele o fez em 88, e não tinha como saber que o muro cairia dali a um ano (diga-se de passagem, no dia do seu aniversário). Mas parece-me sintomático que, não só a União Soviética tenha nascido e morrido enquanto Sonho estava preso, isto não seja sequer mencionado na HQ.

Independente disto, Sandman reflete uma imensa instabilidade de valores: se até os Perpétuos, que têm este nome, mudam, abandonam suas funções, e chegam a morrer, então o que pode ser, de fato, perpétuo? É porque esta é a época em que a HQ foi escrita. Um tempo em que um "sonho" que se julgava morto, um sistema de valores antigos (a democracia liberal?) retorna, apenas para descobrir que até as coisas em que ele mais acreditava, até ele mesmo, mudaram - e que no fim das contas, tudo muda. Uma sociedade que não consegue encontrar solo firme para pisar, conforto, valores universais e/ou eternos. Mas que, por isso mesmo, busca desesperadamente afirmar a eternidade. Nas palavras de Destruição:

"Deuses vêm e vão. Mortais lampejam, reluzem e se apagam. Mundos não duram. Estrelas e galáxias são coisas transitórias e fugidias que piscam como vagalumes e se desfazem em pó e frieza. Mas eu posso fingir."

Sem dúvida, não só ele.

2.11.05

Os Mortos Não Regressam, Os Deuses Não Caem - 3

- Diana? Diana, Kryptus. Ela morreu em missão. Você viu, estava –
- Não me lembre daquele dia.
- Eu. - Cyrian iria pedir desculpas, mas deteve-se; não saberia dizer se por medo da reação, de fato, ou se por sentir que seu antigo amigo não as merecia mais.
- Como disse, nosso mestre não me contou muita coisa. Não contou o que acontecera a você. Não contou o que tinha planejado para mim.
- Você quer dizer que acha que ele a matou? Que ele planejou a morte dela?

"Para quê?", ele teria perguntado, mas a resposta completou-se sozinha em sua mente: para torná-lo o que ele é.

- Como você pode achar isso, Kryptus?
- Eu não acho, sei.

Típico.

- Foi vingança, então. Você o matou, vingou-se. Ótimo. Ótimo motivo. Então está resolvido.
- Você não concorda.
- Não, não concordo, mas principalmente, estou tentando entender duas coisas. Você matou o deus da morte, então porque ainda há um culto ao deus?
- Não há.
- Então o que é isto, o que você está liderando? Um culto a si mesmo?

Ele riu disto. Na maioria dos casos, uma gargalhada frente a uma ironia deste tipo costuma trazer alívio e descontração para a maioria das conversas. Se, como no caso, é a risada de alguém que apreciou a ironia, alguns talvez digam que certamente este é um claro chamado à leveza e à informalidade. Mas não o fariam, se tivessem ouvido Kryptus rir daquele jeito.

Cyrian tinha, embora tivesse dificuldade em recordar quando. Foi depois de Diana morrer – seu então discípulo jamais gargalharia daquele jeito enquanto ela estava viva. E alguém, muito tolamente, naquele dia buscara consolar o jovem dizendo-lhe que ela estava num lugar melhor.

O primeiro problema com a gargalhada de Kryptus era que ela era verdadeira, que ele estava realmente rindo; não estava tentando ser assustador, nem mascarar seu desconforto: só estava rindo. O segundo problema era que, apesar disto, não se parecia em nada com o riso de alguém que estava achando graça em algo; também não parecia o de alguém que tentava intimidar outros ou mascarar seu desconforto. Porque, e este era o terceiro problema, não se parecia com nada.

O murmúrio leve que nasceu em sua garganta cresceu para o riso, e para a gargalhada, sem ser o som, em nenhum momento, de nenhum deles. Quando murmúrio, assemelhava-se mais ao som de indiferença que alguns fazem quando, em algum momento, julgam que devem fingir interesse em algo que deveria ter-lhes parecido engraçado e não pareceu, sem, no entanto, esforçarem-se o bastante. Quando riso, era irritantemente uniforme e intermitente, curto, como um pianista com o dedo preso a uma tecla, um disco sujo. E quando gargalhada, a impressão que se tinha era de que ele estava, em cada sílaba de seu agora lento "ha, ha, ha", recuperando o fôlego, de que lhe faltava ar para emitir um som a altura de uma gargalhada verdadeira - uma que não fosse tão terrivelmente, medonhamente baixa, quase silenciosa.

Mas mesmo baixa, a gargalhada ecoou pelas paredes da masmorra, como ecoara pela capela tantos anos atrás. E era como se ela só se propagasse pelo silêncio, só o fizesse porque havia tamanho espaço desocupado, vazio. E como se ela mesma, e as paredes, e Kryptus, e todos os que o ouvissem, não significassem nada, não servissem a nada, não fossem nada.

- Você realmente não é inútil, Cyrian. - disse ele, entre restos de quase-riso. - Você me diverte.

Mas significavam alguma coisa, eram alguma coisa, e nem Kryptus, nem nada nele, era assim tão vazio.

- A outra coisa que não entendo - mentiu Cyrian, tentando o melhor que pôde ignorar a reação de seu carcereiro. - é Diana.

O que sobrara de riso morreu rápido ante a menção do nome, e a reação que talvez impedisse a fala de seguir, não chegou a surgir.

- Ela morreu, e você a amava. E você é o Senhor do Mortos. E ela continua morta.
- Sou, não era. - Kryptus conseguiu responder, mas sua certeza de antes mostrava sinais de enfraquecimento.
- E quando se tornou? Há quantos anos se tornou? Há quanto tempo você já lidera esta igreja?
- Não havia restos mortais, Cyrian. Não se faça de idiota, você sabe como essas coisas funcionam. - Tem razão, Kryp. Eu sei como essas coisas funcionam. Fui o sumo-sacerdote antes de você, e sei exatamente como se traz alguém dos mortos.
- Não me chame –
- E lembro muito bem que eu, embora certamente tivesse, e ainda tenha, muito menos poder que você, quando dominava as artes negras, não precisava de nenhum resto mortal para trazer alguém de volta. Nenhum mesmo.

Cyrian finalmente se levantou, finalmente conseguiu olhar Kryptus nos olhos.

- Era difícil, mas era possível. E pra você, Senhor dos Mortos, você que pôde até matar um deus, certamente é algo bem simples. Basta que se saiba o nome da pessoa, e que ela aceite voltar.

O rosto de Kryptus tornara-se agora, de alguma forma, claramente discernível por debaixo do capuz, mas de maneira alguma fácil de se descrever. Havia linhas e rugas que se tensionavam, que Cyrian jamais imaginara que estariam lá. Seus lábios, ligeiramente abertos, mostravam dentes trincados; fios de cabelo, muitos deles grisalhos, deslizaram para frente de seus olhos - cuja parte branca era agora visível - denotando um leve, e de outra forma imperceptível, movimento.

- Você ainda lembra o nome dela, imagino.
- Sim. - sua mão direita, que antes segurava o cabo da foice de forma desleixada, agora a apertava com força. - Lembro.
- E ela, ou o que quer que reste dela, onde quer que ela esteja, lembra de amar um homem de coração nobre. Um pouco amargo pelas perdas prematuras, mas um bom homem, alguém que não fosse um monstro conquistador de mundos e assassino de. Quantos? Quantos você matou, Kryptus, em quantos lugares, quantos anos?
- Não sei.
- Ela não quer voltar.
- Não. - Kryptus abaixou a cabeça, mirou o chão. Não conseguia mirar mais nada. - Não quer.
- Você pode ir embora a hora que quiser. Não tem mais um mestre, líder, deus. Não quer realmente conquistar mundos, levantar mortos, desafiar deuses. Nunca quis. Eu o conheço, Kryptus. Eu o vi crescer.
- Não pude ter o que eu quis, foi tirado de mim.
- E você desistiu. Não teve coragem para mudar.
- Não, não!

Kryptus estava de costas na parede, agora, e havia gritado, sem reparar em uma coisa nem outra.

- Diana tinha razão sobre você. Você ainda é uma boa pessoa, de algum modo. Posso ver isso agora muito claramente: ainda é o mesmo garoto mirrado e assustado que vi chegar no templo, e que chorava por qualquer coisa, e escrevia poemas bobos e sinceros em segredo. Ainda é o pequeno Kryp. Mas não quer ser. E isso, isso eu não consigo entender.
- Cyrian.
- Quê?
- Você vai morrer por isso. Eu vou te matar.
- Por que você faria isso? Pra quê? Não vai ajudar em nada, não vai mudar nada.
- Não. - ele respondeu, levantando a mão esquerda e fazendo dois sinais rápidos na direção de seu prisioneiro. - Não vai.

Ao terminar da frase, Kryptus então estalou os dedos, e a perna direita de Cyrian explodiu.

O berro de dor dele foi ouvido por todos os que se encontravam na fortaleza acima. A maioria gostaria de pensar que havia se acostumado àquele tipo de som, mas não havia.

Ströhlm, que se dirigia para lá para dar um recado a seu mestre, por outro lado, estava tão acostumado que já podia dizer que aquele era o grito de um homem que perdera um membro, e que provavelmente fora um perna. Isto era uma predileção de seu mestre, porque, dificultando a locomoção, geralmente levava o prisioneiro a contato direto e involuntário com seus próprios dejetos e urina ao longo de muitos dias de cativeiro. Era um bom sinal: significava que Kryptus já estava terminando, e que não seria necessário aguardá-lo sair.

- Mas não vou te matar agora. - a porta abriu-se atrás dele, enquanto a forma espaçosa de Ströhlm já podia ser divisada descendo a escada da masmorra. - Vou torturar primeiro, fazer isso aos poucos.

Cyrian não conseguia parar de gritar de dor e, portanto, não conseguia responder.

- Eminência. - Ströhlm saudou seu mestre, ao terminar a descida. - O sr. Peters está procurando pelo senhor em seu escritório em Nova Iorque, senhor.
- Não me lembro desse nome.
- Peters? É aquele que chamam de Shade, Eminência. O detetive.
- Não, quero dizer este lugar de que você fala. Nova Iorque. Não lembro desse nome.

Ele ainda lançou um último olhar para Cyrian. O ferimento dele já estava cicatrizando - não queria que ele morresse assim, tão fácil - e a dor, passando, mas ele não disse nada. Seu rosto dizia o bastante: mostrava raiva, dor, desespero, e até desejo de vingança, mas, principalmente, e contrariando o que esperava dele, piedade.

- Acho que minha memória não anda muito boa. - completou Kryptus, e subiu a escada; e a entrada fechou-se após sua saída, e as luzes se apagaram, deixando o prisioneiro sozinho.

Os Mortos Não Regressam, Os Deuses Não Caem - 2

O outro pareceu não ouvir, seguindo até as barras que separavam a cela do corredor, e que se abriram para ele na forma de uma porta que, até então, não estivera lá.

- É você? - prosseguiu o prisioneiro. - O que eu ouvi é verdade? É você, mesmo?
- Cyrian. - Kryptus respondeu, afinal. - Você não pode estar vivo.

O prisioneiro aproximou-se, estendendo as mãos para frente, forçando os olhos para tentar enxergar o rosto debaixo do capuz.

- Pelo Sétimo Céu, é você mesmo. Nome Louvado, o que. - ele chegou a recuar, ao avistar o brilho nos olhos negros de seu carcereiro. - O que houve com você, Kryp?
- Não me chame assim, traidor. Você não pode nem estar vivo. - as portas fecharam-se atrás dele, assim que terminou de falar. - Não devia estar vivo.
- Sinto decepcioná-lo.

Cyrian deu meia volta, alguns passos na direção da parede direita, onde se recostou.

- Você está com uma aparência horrível, Kryptus. Que diabos você andou fazendo?
- Centenas de coisas que não são da sua conta, traidor. E você também não está grande coisa.
- Ah, sim, aprisionado e torturado por fanáticos de um culto da morte. Não faz bem pra saúde.
- Não. Não faz.

Kryptus não moveu um dedo, aparentemente nem piscava o olho enquanto seu prisioneiro dava um riso abafado e se deixava escorregar até o chão, encostado à parede.

- Você está mesmo horrível. Não dá nem pra dizer que é oito anos mais novo que eu.
- Não sou mais.

Como estava apenas brincando, Cyrian demorou a perceber que o outro não estava.

- Hein?
- Não sou mais novo que você, traidor. E você não é mais meu padrinho, mentor ou veterano.

O riso que deu antes de responder foi incerto:

- Ninguém deixa de ser mais novo que ninguém, Kryptus.
- Claro que não, Cyrian. E os mortos não retornam para caminhar entre os vivos, e os deuses não caem.
- Do que você está falando, Kryp?
- Não me chame de Kryp. Cyrian estava prestes a levantar o rosto para dizer que podia muito bem chamar do que quisesse alguém que tinha visto crescer e a quem gostaria de ainda poder chamar de amigo; mas antes disto foi ele mesmo levantado pela mão magra de Kryptus, fechando-se sobre sua garganta, não mais coberta pela luva, e prensado contra a parede. Os dedos tinham uma força que não correspondia a seu tamanho e formato, e emitiam um brilho fosco, cinzento.

Tinha ouvido falar daquilo, do toque gelado. Julgara ser uma lenda. A sensação horrorosa de ter sua força sugada, seu rosto gelando, os ossos paralisando, mostravam-no errado.

- Não me pergunte nada. Você é meu prisioneiro. Eu vou lhe fazer perguntas, e você vai responder. E não vai me chamar de Kryp.

As respostas sarcásticas nas quais Cyrian conseguiu pensar não saíam da boca: faltava-lhe o ar. Quando Kryptus soltou-o e ele desabou no chão, sem forças, era duro admitir, faltava-lhe a coragem. Seu carcereiro afastou-se levemente, e prosseguiu.

- Você realmente não morreu; está ferido, então não pode estar morto. Mas isto ainda não explica como sobreviveu. Os acólitos foram todos massacrados, mas você está vivo. Como?
- A Luz. - ele conseguiu dizer, embora ainda não pudesse levantar. - A Luz me salvou.
- Ninguém nunca está a salvo.
- Ele veio a mim, Kryptus. Eu era um acólito da igreja dos mortos, mas ele sentiu o bem em meu coração e me salvou. O Arauto Celeste, o –
- Rei de Asas Prateadas, o Dragão Guerreiro, eu sei. Não quero sua pregação, traidor, quero respostas. O Lorde dos Mortos estava com os acólitos, e não pôde proteger nenhum de vocês, mal pôde escapar.
- Eu sei, eu estava lá, eu –
- Você não faz idéia de como escapou, faz?
- Eu não. Não me lembro bem. Só da luz, e de acordar seguro, no templo.
- Você não é só idiota, Cyrian. É um idiota inútil.

Ele já havia conseguido se reerguer o bastante para sentar, e para expressar em seu rosto o quanto estava, de fato, confuso.

- Você não falou com ele, depois? Com o Lorde? Ele não lhe contou?
- Ele não me contou muitas coisas.
- Onde ele está?

Era difícil dizer ao certo, mas Cyrian acreditou ter visto um sorriso formar-se no rosto de Kryptus, enquanto ele se aproximava e se agachava, ficando ligeiramente acima de si.
- Ah. Intenções verdadeiras não conseguem nunca se esconder.

Ele levantou o queixo do prisioneiro com a mão, já por debaixo da luva novamente.

- E você provou não ser de todo inútil. Afinal, era atrás disto que você estava, não, Cyrian? Do paradeiro do seu antigo mestre, a deidade inimiga?
- Nós ouvimos rumores preocupantes. Rumores impossíveis, sobre um homem que teria assassinado um deus. - ele engoliu em seco antes de completar - Onde ele está, Kryptus?
- Não faça perguntas. Eu já lhe avisei.

Cyrian desviou os olhos. Não conseguia mais encará-lo de frente, muito menos aceitar o que começava a parecer-lhe verdade. Tentou fazê-lo enquanto relembrava a imagem do garoto assustado que, antes de completar os nove anos, tinha sido levado ao templo, de dizê-lo que não tivesse medo e que ele estava seguro.

- Não pode ser verdade, Kryptus. Eu disse a eles que não podia ser.
- O tempo é igual para todos, os mortos não regressam, os deuses não caem?
- Sim, sim e sim!
- No entanto, eu não sou mais novo que você, e você morreu e não está mais morto.
- Kryptus ofereceu a ele uma pequena pausa, para que, no lapso de um único inspirar ofegante, ele tivesse tempo de surpreender-se, indignar-se e, afinal, perceber que era verdade. - E aquele a quem um dia chamamos de mestre, não vive mais.

Sim, ele estava seguro agora, mais do que nunca. Não era apenas incrivelmente poderoso: era o topo da escala hierárquica. Nem mais uma ordem superior ele precisava temer. Cyrian devia saber que ele era perfeitamente capaz de fazê-lo, mas mais que isso, que inevitavelmente o faria.
- Você fez mesmo isso. Como pôde? Como conseguiu?
- De maneira não muito diferente das que sempre usei. Animal, planta, monstro, homem, deus: no final, morrem mais ou menos da mesma forma.
- Ora, seu. Como você? Pelo Abismo, você não entende o que quero dizer?
- Não.
- Ele. Ele salvou sua vida! Criou você! Te ensinou tudo que podia! Ele, ele era quase seu pai, ele –
- Ele não permitiu que o que eu tinha de mais precioso vivesse.

Cyrian levou algum tempo tentando entender a que aquilo se referia. Não fazia sentido, mas só havia uma pessoa da qual ele podia estar falando.

Diana.

1.11.05

Os Mortos Não Regressam, Os Deuses Não Caem - 1

Ele tinha pressa, passos lentos à parte. Agira com indiferença ainda maior para com seus inúmeros assistentes no evento que abandonou, porque os julgava, agora, não apenas inferiores, mas também obstáculos a um objetivo.

Errou o andar, parando no 13° antes, esquecendo que evitara combinar suas atividades com as superstições acerca das mesmas, e reservara o 20° andar para a sede local do laboratório, assim como para a saída.

O Dr. Ericsson o aguardava na porta do elevador, com o que parecia ser uma assistente.

- Cristóvam. - o doutor principiou, assim que as portas abriram.
- Erasmo. Esta não é uma boa hora.

O outro olhou ao redor. Clientes, candidatos a cliente e candidatos a funcionários lentamente percebiam a presença do dono do lugar, e começavam a aglomerar-se em volta. A moça, de longos cabelos avermelhados, pareceu levemente decepcionada.

- Alguma coisa errada? - Erasmo tocou-lhe o ombro.
- Não, uma coisa certa.
- Ah, entendo.
- Não esqueci dos seus projetos, doutor, nem desisti.
- Na verdade, vim aqui mais para lhe apresentar minha sobrinha, Anna.

A moça fitou-o com um sorriso dúbio.

- Ah.
- Deixemos para outra ocasião. Ainda esta semana, talvez?
- Não sei. Tenho que ver minha...

Ströhlm dobrou o corredor, quase impossível de distinguir entre o amontoado de gente que já se aglomerava em frente ao elevador.

- Agenda? - interrompeu a jovem Anna.
- Não. Digo. Não quis dizer que não. Eu.
- Tem certeza de que não tem nada errado, Cristóvam? - indagou Erasmo.
- Não. Não tenho. - o barulho das pessoas começava a perturbar sua voz grave e baixa. - William!

Seu grito mal chegava a ser de fato grito, mas Ströhlm ouviu e atendeu, e sua silhueta intimidadora foi o bastante para afastar o pequeno grupo de curiosos, quando se aproximou. Logan, que o acompanhara, e cuja estatura menor impossibilitava que fosse visto antes, encarregou-se das relações públicas, como lhe era natural.

- Uma boa tarde e com sua licença, todos. Infelizmente o Dr. Ramirez está aqui para um compromisso urgentíssimo e não poderá dispensar atenção a nenhum dos senhores. Porém tenho certeza de que nossos terminais de atendimento tradicionais...

Ele prosseguiu com o protocolo, sinalizando com o rosto, dando a entender que ficaria ali e seu líder podia sentir-se livre para fazer o que bem entendesse.

- Doutor Ericsson. Senhorita. - Ströhlm aproximou-se dos três. Quase permitiu que o costumeiro "Vossa Eminência" deixasse seus lábios para cumprimentar seu mestre, mas conteve-se, e a ele não disse nada.
- Não demoremos, William. Erasmo.
- Nos vemos em breve, Cristóvam.

A jovem Anna lançou-lhes um olhar que não souberam responder à altura, vindo ambos a deixar a entrada sem dizer mais nada a ela, e sem maiores empecilhos. Seguiram por uma longa série de corredores, rapidamente alcançando os fundos do laboratório.

- Eminência. - Ströhlm tentou principiar.
- Vocês não estão enganados? - seu mestre o interrompeu, enquanto se livrava da gravata. - Têm certeza de que é mesmo ele?
- Nunca o vimos, Eminência. Mas, pela descrição e pelos rituais de.

Ströhlm deteve-se ao ver seu mestre, já com o paletó na mão direita, surpreender um faxineiro em pleno serviço.

- Eminência. A Saída é na terceira porta.

O serviçal nada fez, exceto assustar-se com o olhar daquele que ele possivelmente nem sabia ser, direta ou indiretamente, seu chefe. Este levou lentamente a mão direita à testa, deu meia volta e comentou, quase num murmúrio:

- Terceira porta, William. Não era a segunda?
- Não, meu senhor. Não aqui.
- Não aqui. Realmente.

Ele caminhou até a terceira porta e a abriu, enquanto seguia com o raciocínio.

- Não, a segunda porta era... Metrópolis. A sede de Metrópolis, não?
- Creio que sim, meu senhor.
- Não creia, William. Verifique.

Abriu a porta e adentraram sem cerimônia. A escuridão da passagem não lhes era mais incômoda, se é que fora em algum momento de suas vidas; caminharam reto, no mesmo ritmo constante, enquanto os poucos resquícios da parede de concreto de um depósito no edifício desapareciam no nada, o chão reto dava lugar a degraus descendentes, e a escuridão era finalmente quebrada pela luz de tochas, presas a paredes de pedra. Os degraus deram lugar a um corredor, e as paredes mal-iluminadas, a uma pequena porta de madeira bem conservada, com palavras entalhadas em uma língua esquecida pela maioria dos homens em quase todos os lugares, prontamente aberta.

Ambos atravessaram para um enorme salão oval, cujas paredes estendiam-se até quase perder de vista, repleto de portas semelhantes, onde dois homens e uma mulher, vestindo longos mantos negros, os aguardavam. Seguravam, ela, um manto de mesma forma e cor, dobrado, sobre o qual repousava um medalhão dourado, losangular, e um par de luvas azul escuras; eles, uma grande foice de cabo de madeira, um, e uma armadura de placas metálicas com detalhes dourados, o outro. Ajoelharam-se em reverência, ante a entrada de seus senhores, e declamaram:

- Nós o saudamos, Eminência, Lorde da Escuridão, Senhor dos Mortos, Caminhante das Dimen –
- Isto não é necessário. - seu mestre os interrompeu, tomando as vestimentas da mulher, deixando-a com o paletó e a gravata. Vestiu o manto, o capuz já lhe cobrindo a cabeça, com um único movimento.
- Onde? - indagou Ströhlm.
- Aqui mesmo, milorde, na primeira cela da masmorra. - respondeu-lhe a mulher.
- Na primeira? Ridículo. Esta cela está ocupada.
- Bom, mi. Milorde. - ela teve alguma dificuldade para prosseguir - É que Vossa Eminência esteve aqui outro dia e. Ele. Vossa Eminência.

"Vossa Eminência fez com que a carne dele derretesse, e que ele de alguma forma continuasse vivo embora fosse apenas feito de ossos, e então deu vida à carne, virou-a do avesso, e a fez destroçar os ossos, e então o prisioneiro estava preso de novo na carne, e sabia que tinha se tornado um monstro, então tentou se matar com os restos de seu fêmur, mas não conseguia. Então o mestre arrancou seus olhos e o fez engoli-los, depois fez o mesmo com a genitália, que ele, algumas horas depois, defecou, intacta. E quando ele se preparou para fazer mais alguma coisa não agüentei mais e saí, e Eminência só saiu de lá uma hora depois, com a cabeça do homem, deixando o restante num estado que eu não saberia descrever."

Era o que ela gostaria de conseguir dizer, mas Ströhlm apenas acenou com a cabeça e respondeu:

- Entendo. - e, vendo que seu mestre já terminara de por as luvas, acrescentou - Mais alguma instrução, senhor?
- Não me perturbem.
- Perfeitamente.

Ele tomou a foice das mãos de seu acólito e rumou para o centro da sala, quando o outro rapaz, como se quisesse lembrá-lo, o interrompeu:

- Eminência, a ar –

Não foi um olhar rápido, nem qualquer expressão repressora no rosto de seu mestre, que fez sua voz falhar: não houve nem uma coisa nem outra. Foi a lembrança de que, da última vez em que o vira ser interrompido daquela maneira, ele permaneceu perfeitamente normal e sereno, e não precisou dizer uma única palavra para que o servo que o interrompera explodisse.

- madura.

Também nenhuma resposta foi necessária. Seu mestre apenas o fitou por mais dois segundos, e isto bastou para que ele tivesse certeza de seu engano, e no momento seguinte se ajoelhasse.

- Perdão, Eminência.

Ninguém disse nada. O lorde retomou seu trajeto como se nada tivesse ocorrido, parando cerca de quinze passos depois, abaixando-se, e abrindo um alçapão que ninguém poderia descobrir lá. Então desceu por pequenos degraus de madeira, fechando a entrada atrás de si.

A masmorra era simples. Consistia de um único corredor, cujo tamanho era difícil precisar, com celas ao lado esquerdo, separadas, umas das outras, por paredes, do vão central, por barras de metal muito pouco distantes umas das outras, cuja natureza mística o perfeito estado de conservação e brilho incomum podiam rapidamente delatar: olhar para elas era saber, no íntimo, que elas deteriam qualquer tentativa de fuga - mesmo as que não envolvessem cruzá-las. O que quer que emitisse a fraca luz que iluminava o lugar não estava ao alcance da vista. O chão era de um tom arenoso, as paredes, da cor do granito, mas ambos perfeitamente lisos, sem nenhum relevo que o toque pudesse perceber. E o teto era indiscernível; quem mirasse para o alto poderia dizer com certeza que ele estava lá, em algum lugar, mas não onde, nem bem qual seria sua cor ou sua forma, que parecia ora reta, ora côncava. E em nenhum ponto do corredor, nem em nenhuma das celas, havia mobília de qualquer tipo.

Na primeira cela à esquerda, deitado, ligeiramente recostado na parede, estava um homem abatido, de longos cabelos castanhos claros e olhos de mesma cor, vestido com o que pareciam ser restos de uma robe branca, tornada cinzenta e avermelhada pela poeira e pelas manchas de sangue. Ao avistar o senhor da masmorra se aproximando, levantou-se o mais rápido que pôde e exclamou, absolutamente surpreso:

- Kryptus!

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Só pra constar, este conto também terá 3 partes.