1.11.05

Os Mortos Não Regressam, Os Deuses Não Caem - 1

Ele tinha pressa, passos lentos à parte. Agira com indiferença ainda maior para com seus inúmeros assistentes no evento que abandonou, porque os julgava, agora, não apenas inferiores, mas também obstáculos a um objetivo.

Errou o andar, parando no 13° antes, esquecendo que evitara combinar suas atividades com as superstições acerca das mesmas, e reservara o 20° andar para a sede local do laboratório, assim como para a saída.

O Dr. Ericsson o aguardava na porta do elevador, com o que parecia ser uma assistente.

- Cristóvam. - o doutor principiou, assim que as portas abriram.
- Erasmo. Esta não é uma boa hora.

O outro olhou ao redor. Clientes, candidatos a cliente e candidatos a funcionários lentamente percebiam a presença do dono do lugar, e começavam a aglomerar-se em volta. A moça, de longos cabelos avermelhados, pareceu levemente decepcionada.

- Alguma coisa errada? - Erasmo tocou-lhe o ombro.
- Não, uma coisa certa.
- Ah, entendo.
- Não esqueci dos seus projetos, doutor, nem desisti.
- Na verdade, vim aqui mais para lhe apresentar minha sobrinha, Anna.

A moça fitou-o com um sorriso dúbio.

- Ah.
- Deixemos para outra ocasião. Ainda esta semana, talvez?
- Não sei. Tenho que ver minha...

Ströhlm dobrou o corredor, quase impossível de distinguir entre o amontoado de gente que já se aglomerava em frente ao elevador.

- Agenda? - interrompeu a jovem Anna.
- Não. Digo. Não quis dizer que não. Eu.
- Tem certeza de que não tem nada errado, Cristóvam? - indagou Erasmo.
- Não. Não tenho. - o barulho das pessoas começava a perturbar sua voz grave e baixa. - William!

Seu grito mal chegava a ser de fato grito, mas Ströhlm ouviu e atendeu, e sua silhueta intimidadora foi o bastante para afastar o pequeno grupo de curiosos, quando se aproximou. Logan, que o acompanhara, e cuja estatura menor impossibilitava que fosse visto antes, encarregou-se das relações públicas, como lhe era natural.

- Uma boa tarde e com sua licença, todos. Infelizmente o Dr. Ramirez está aqui para um compromisso urgentíssimo e não poderá dispensar atenção a nenhum dos senhores. Porém tenho certeza de que nossos terminais de atendimento tradicionais...

Ele prosseguiu com o protocolo, sinalizando com o rosto, dando a entender que ficaria ali e seu líder podia sentir-se livre para fazer o que bem entendesse.

- Doutor Ericsson. Senhorita. - Ströhlm aproximou-se dos três. Quase permitiu que o costumeiro "Vossa Eminência" deixasse seus lábios para cumprimentar seu mestre, mas conteve-se, e a ele não disse nada.
- Não demoremos, William. Erasmo.
- Nos vemos em breve, Cristóvam.

A jovem Anna lançou-lhes um olhar que não souberam responder à altura, vindo ambos a deixar a entrada sem dizer mais nada a ela, e sem maiores empecilhos. Seguiram por uma longa série de corredores, rapidamente alcançando os fundos do laboratório.

- Eminência. - Ströhlm tentou principiar.
- Vocês não estão enganados? - seu mestre o interrompeu, enquanto se livrava da gravata. - Têm certeza de que é mesmo ele?
- Nunca o vimos, Eminência. Mas, pela descrição e pelos rituais de.

Ströhlm deteve-se ao ver seu mestre, já com o paletó na mão direita, surpreender um faxineiro em pleno serviço.

- Eminência. A Saída é na terceira porta.

O serviçal nada fez, exceto assustar-se com o olhar daquele que ele possivelmente nem sabia ser, direta ou indiretamente, seu chefe. Este levou lentamente a mão direita à testa, deu meia volta e comentou, quase num murmúrio:

- Terceira porta, William. Não era a segunda?
- Não, meu senhor. Não aqui.
- Não aqui. Realmente.

Ele caminhou até a terceira porta e a abriu, enquanto seguia com o raciocínio.

- Não, a segunda porta era... Metrópolis. A sede de Metrópolis, não?
- Creio que sim, meu senhor.
- Não creia, William. Verifique.

Abriu a porta e adentraram sem cerimônia. A escuridão da passagem não lhes era mais incômoda, se é que fora em algum momento de suas vidas; caminharam reto, no mesmo ritmo constante, enquanto os poucos resquícios da parede de concreto de um depósito no edifício desapareciam no nada, o chão reto dava lugar a degraus descendentes, e a escuridão era finalmente quebrada pela luz de tochas, presas a paredes de pedra. Os degraus deram lugar a um corredor, e as paredes mal-iluminadas, a uma pequena porta de madeira bem conservada, com palavras entalhadas em uma língua esquecida pela maioria dos homens em quase todos os lugares, prontamente aberta.

Ambos atravessaram para um enorme salão oval, cujas paredes estendiam-se até quase perder de vista, repleto de portas semelhantes, onde dois homens e uma mulher, vestindo longos mantos negros, os aguardavam. Seguravam, ela, um manto de mesma forma e cor, dobrado, sobre o qual repousava um medalhão dourado, losangular, e um par de luvas azul escuras; eles, uma grande foice de cabo de madeira, um, e uma armadura de placas metálicas com detalhes dourados, o outro. Ajoelharam-se em reverência, ante a entrada de seus senhores, e declamaram:

- Nós o saudamos, Eminência, Lorde da Escuridão, Senhor dos Mortos, Caminhante das Dimen –
- Isto não é necessário. - seu mestre os interrompeu, tomando as vestimentas da mulher, deixando-a com o paletó e a gravata. Vestiu o manto, o capuz já lhe cobrindo a cabeça, com um único movimento.
- Onde? - indagou Ströhlm.
- Aqui mesmo, milorde, na primeira cela da masmorra. - respondeu-lhe a mulher.
- Na primeira? Ridículo. Esta cela está ocupada.
- Bom, mi. Milorde. - ela teve alguma dificuldade para prosseguir - É que Vossa Eminência esteve aqui outro dia e. Ele. Vossa Eminência.

"Vossa Eminência fez com que a carne dele derretesse, e que ele de alguma forma continuasse vivo embora fosse apenas feito de ossos, e então deu vida à carne, virou-a do avesso, e a fez destroçar os ossos, e então o prisioneiro estava preso de novo na carne, e sabia que tinha se tornado um monstro, então tentou se matar com os restos de seu fêmur, mas não conseguia. Então o mestre arrancou seus olhos e o fez engoli-los, depois fez o mesmo com a genitália, que ele, algumas horas depois, defecou, intacta. E quando ele se preparou para fazer mais alguma coisa não agüentei mais e saí, e Eminência só saiu de lá uma hora depois, com a cabeça do homem, deixando o restante num estado que eu não saberia descrever."

Era o que ela gostaria de conseguir dizer, mas Ströhlm apenas acenou com a cabeça e respondeu:

- Entendo. - e, vendo que seu mestre já terminara de por as luvas, acrescentou - Mais alguma instrução, senhor?
- Não me perturbem.
- Perfeitamente.

Ele tomou a foice das mãos de seu acólito e rumou para o centro da sala, quando o outro rapaz, como se quisesse lembrá-lo, o interrompeu:

- Eminência, a ar –

Não foi um olhar rápido, nem qualquer expressão repressora no rosto de seu mestre, que fez sua voz falhar: não houve nem uma coisa nem outra. Foi a lembrança de que, da última vez em que o vira ser interrompido daquela maneira, ele permaneceu perfeitamente normal e sereno, e não precisou dizer uma única palavra para que o servo que o interrompera explodisse.

- madura.

Também nenhuma resposta foi necessária. Seu mestre apenas o fitou por mais dois segundos, e isto bastou para que ele tivesse certeza de seu engano, e no momento seguinte se ajoelhasse.

- Perdão, Eminência.

Ninguém disse nada. O lorde retomou seu trajeto como se nada tivesse ocorrido, parando cerca de quinze passos depois, abaixando-se, e abrindo um alçapão que ninguém poderia descobrir lá. Então desceu por pequenos degraus de madeira, fechando a entrada atrás de si.

A masmorra era simples. Consistia de um único corredor, cujo tamanho era difícil precisar, com celas ao lado esquerdo, separadas, umas das outras, por paredes, do vão central, por barras de metal muito pouco distantes umas das outras, cuja natureza mística o perfeito estado de conservação e brilho incomum podiam rapidamente delatar: olhar para elas era saber, no íntimo, que elas deteriam qualquer tentativa de fuga - mesmo as que não envolvessem cruzá-las. O que quer que emitisse a fraca luz que iluminava o lugar não estava ao alcance da vista. O chão era de um tom arenoso, as paredes, da cor do granito, mas ambos perfeitamente lisos, sem nenhum relevo que o toque pudesse perceber. E o teto era indiscernível; quem mirasse para o alto poderia dizer com certeza que ele estava lá, em algum lugar, mas não onde, nem bem qual seria sua cor ou sua forma, que parecia ora reta, ora côncava. E em nenhum ponto do corredor, nem em nenhuma das celas, havia mobília de qualquer tipo.

Na primeira cela à esquerda, deitado, ligeiramente recostado na parede, estava um homem abatido, de longos cabelos castanhos claros e olhos de mesma cor, vestido com o que pareciam ser restos de uma robe branca, tornada cinzenta e avermelhada pela poeira e pelas manchas de sangue. Ao avistar o senhor da masmorra se aproximando, levantou-se o mais rápido que pôde e exclamou, absolutamente surpreso:

- Kryptus!

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Só pra constar, este conto também terá 3 partes.