16.10.05

Chimerae - 3

“Eis aí a Quimera”, declarou, sabendo que ela era ou havia sido, também, Thelkterion; e por ele não derramou lágrimas, mas também não conseguiu tirar-lhe nenhum pedaço do corpo, cauda, garra, pata ou cabeça, que pudesse provar sua vitória. Sem olhar para trás, deixou a torre, retornando ao lugar de onde viera.

Era noite quando ela alcançou o trecho onde os arredores da estrada dividiam-se novamente em dois, e avistou a figura de Hain em seu manto de duas cores.

“Saudações, companheiro!” Valina aproximou-se, alegre pela caçada bem-sucedida.
“Saudações, caçadora.”, ele respondeu, ainda com a moeda em mãos.
“Tuas direções foram certas, teus conselhos, falsos, e teus temores, infundados.”
“E por que seria isto?”
“Segui o caminho que me apontaste, encontrei a besta e a derrubei, sem que ela pudesse me ferir.”
“És jovem e tola. Seguiste o caminho que apontei, é verdade. Mas não encontraste a besta, e a ferida que agora carregas é a maior que carregarás.”
“Tolo és tu! Eu bem sei o que vi e pelo que passei!”
“Tu vês apenas o que queres, e o que viste é apenas um lado daquilo que já conhecias e, como moeda, tem sempre outro lado. Dize-me: foi um monstro que tua espada perfurou? Ou um homem?”
“Um monstro!”
“Então retorna lá, Valina, filha de Valmont. Ninguém nunca pôde impedir-te de seguir teu caminho, nem poderá, senão o último juízo de Mire, quando a lua for da cor do sangue e o terror vier do Oeste.”

Foi então que ela compreendeu que aquelas eram as palavras de um deus, a quem os antigos chamavam Ha, cujo nome principia o modo como até hoje alguns designam nosso lar, e que é o equilíbrio, a balança que tudo pesa, senhor das estradas, pai das medidas, e que não pode ter estado em todos os lugares porque é em todos eles.

Ela retornou, sem parar para descansar, comer ou dormir, para a caverna, tomada pelo desespero. Adentrando a torre e correndo até a sala de armas, encontrou um rastro de sangue que levava até o quarto, onde, na cama, jazia, agonizando de dor, Thelkterion.

“És tu que vem aí, Valina? Não consigo mover-me para ver teu rosto.”
“Sou” ela respondeu, mas não conseguiu aproximar-se. “Que se passou contigo, como foi que te feriste desse modo?”
“Não sei bem. Posso ter apenas delirado, ou sido vítima de um ardil.”
“Que queres dizer?”
“Sei apenas que um dia saíste para procurar a besta, Quimera, e quando regressaste, eras um bode. Apesar disso vi que era mesmo ainda tu, e disse que devias ficar na torre comigo, pois me sentia solitário, mas tu retrucaste que, pelo contrário, eu é que devia sair à caça contigo. Então, no dia seguinte, quando tentei fazê-lo, surgiste como um leão e me impediste, dizendo que não precisavas de minha ajuda, e quando voltaste, disse que procuraria mais um dia e, falhando, iria embora. Então, apesar de triste, fiquei contigo, mas acordei ao lado de um dragão; como ainda assim sabia que era na verdade tu, embora dragão, disse-te que não partisse, pois a queria sempre comigo, mas respondeste que nada te prenderia aqui, e que, se eu o tentasse, tu furarias meus olhos, derrubaria minha torre, lacraria minha caverna e arrancaria meu coração!”
“Sim”, conseguiu murmurar Valina. “Foi o que eu disse.”
“Custa-me crer”, retrucou-lhe o incrédulo Thelkterion, e prosseguiu. “Mas tinhas razão em não querer ficar aqui, pois minha torre tornar-se-ia prisão para ti, viajante. Por isso, quando terminaste tua última busca, fui ao teu encontro, e no caminho disse-te que, para onde quer que fosses, eu seguiria, e tu respondeste que eu em realidade não queria, nem poderia fazê-lo. Pois eu então disse que não queria nem podia era viver sem ti, e desci à sala esperando ver teu belo rosto, mas deparei-me com a fera terrível que tu procuravas, e que eu julgava nem existir! Então lutei com ela, e até pude feri-la com meu fogo e meus truques, mas ao final...”
“Ao final ela perfurou-te o coração com uma estocada certeira, e o deixou moribundo.”

Thelkterion arregalou os olhos.

“Eras tu! Maldita seja, tu e tua maldita caça de monstros!”
“Era? Eu nunca quis ferir-te.”
“Pois foi exatamente o que fizeste. E se há não muito tempo eu te disse, que se fosses embora, não precisarias preocupar-se em arrancar meu coração, digo-te agora: deixa-me, que já o destruíste!”
“Mas tu, teu ferimento! Vais ficar bem?”
“Não. Mas que isso não te impeça de partir.”

E ela partiu, lançando um longo olhar para ele, para o quarto, para a torre, para a caverna. Então principiou a chorar como nunca havia chorado, e entendeu qual era a ferida de que lhe falara Hain – que, ainda naquele dia, veio até ela nos arredores da entrada da caverna.

“Entendes agora?”, perguntou-lhe ele.
“Sim. Entendo quem é o outro lado da moeda, e entendo aquilo de que me falaste da primeira vez em que nos vimos.”
“Então alcançaste o equilíbrio, embora o preço pago tenha sido alto. E no futuro, que ele guie tuas ações e teus conselhos, e te permita sempre vislumbrar as moedas como devem ser vislumbradas, e distinguir as verdades das ilusões.”

Assim disse ele. E algum tempo depois, quando os dragões atacaram e iniciou-se a Grande Guerra, as quimeras uniram-se a eles e às outras grandes bestas, diz-se que foi a ela que Ethos e o Imperador pediram conselho, e que foi ela quem lhes disse que lutassem, embora poucos, ou talvez ninguém, compreendam seus motivos.