11.10.05

Chimerae - 1

Há muito tempo atrás, quando o Grande Império cobria a Terra, e os dragões e os deuses caminhavam entre os homens, e as duas luas ainda eram brancas, viveu uma mulher chamada Valina, que entre os antigos significava "viajante".

Valina não conheceu seus pais, nem o lugar onde nascera. Foi criada por um caçador de monstros chamado Valmont, que dizia tê-la encontrado na estrada e não saber nada nem sobre uma coisa nem outra, embora ela mesma desconfiasse que lhe escondia algo. De todo jeito, amava-o como a um pai, e aos mercenários que o acompanhavam, como família.

Cedo aprendeu a caçar, orientar-se na selva, na montanha e na planície. Criança, era magra e tinha a pele muito lisa e suave; mas logo o exercício diário e as intempéries da vida de viagem e risco calejaram suas mãos, enrijeceram sua pele, alteraram a expressão suave de seu rosto. Ela não gostava de seus cabelos totalmente lisos, que denunciavam sua origem estrangeira e o não-parentesco com Valmont: buscava cortá-los, amarrá-los ou ao menos, desarrumá-los, em vão. Aprendeu, por observação e, mais tarde, por rebeldia, as artes da espada, da montaria, e do arco, e mesmo entre os do grupo seu talento era sem par, embora todos, por terem-na como irmã ou como filha, a poupassem de todos os riscos e a impedissem de participar das batalhas. Então, um dia abandonou-os sem aviso e foi viajar por conta própria, em busca de aventura, e de sua terra natal.

Naquele tempo havia também grandes bestas, muito mais terríveis do que as que hoje conhecemos, que a generosidade dos deuses lacrou em lugares remotos, junto com os dragões, após a Grande Guerra, que mesmo os maiores heróis temiam caçar. Pois diziam que no sudoeste, que hoje chamamos de Illwar, vivia uma enorme besta alada de três cabeças conhecida por Quimera, que surgia inesperadamente, trazia morte e fogo em seu encalço, e desaparecia, sendo qualquer herói incapaz de encontrá-la ou feri-la.

Passando por lá, Valina foi abordada por um homem alto, cujas vestes eram brancas de um lado e negras do outro, e que andava jogando para o ar uma moeda prateada. Ela normalmente o ignoraria, como costumava fazer com quase todos; mas percebendo que ele não possuía bagagem nem arma e, portanto, talvez estivesse perdido ou desabrigado, embora seu rosto fosse muito sereno, abordou-o.

“Viajante”, aproximou-se, com a palavra que era também seu nome, “aonde vais desarmado e desprotegido? Acaso estás perdido ou em falta do lar? Se precisares, aceita aqui um pouco de minha comida e minha água, e te darei proteção e farei companhia pela noite.”
“Diverso de ti, guerreira,” respondeu o homem, “não sou nem nunca serei viajante.”
“Então, moras aqui?”
“Este é meu lugar. Ainda assim, de bom grado, aceitarei tua oferta, se ela foi mesma sincera.”
“Foi. Qual teu nome, estranho?”
“Podes chamar-me Hain.”, ele retrucou, seu nome significando “medida”, do qual derivou a moeda que, por séculos, usaram mais tarde em Narn.

Sentaram-se então ao redor de uma fogueira e comeram, embora o estranho não despejasse a primeira gota da bebida para Heryina, como muitos de nós fazem para a Deusa até hoje, e tiveram uma conversa agradável, pois as palavras dele eram belas e ponderadas, e ele sabia de muitas coisas de muitos lugares onde ela ainda não estivera.

“E tu estiveste? Em todos os lugares de que me fala?”
“Não.”
“Então como sabes tanto sobre eles?”
“Tu precisas ser outra pessoa para conhecê-la?"
“Não, mas precisas conviver com ela, conversar com ela.”
“Exatamente.”
“Não entendo.”
“Chegará o dia em que alcançarás o equilíbrio para aconselhar os homens a tomar a maior decisão que já tomaram. Então, entenderás.”

Ela calou-se por um momento, sem conseguir dar sentido adequado às palavras do homem, até que, deixando de lado tanto o maravilhoso conselho quanto a profecia, sem se dar conta da importância de ambos, preferiu mudar o assunto e indagá-lo sobre outra coisa:

“Hain, tua companhia me é muito agradável e tuas palavras parecem-me muito sábias, de modo que nem considero esforço dividir contigo minha água e comida, ou meu tempo. Ainda assim, pedir-lhe-ia um favor em retorno.”
“Concedê-lo-ei, se em meu poder estiver; não há favor que não traga retorno.”
“Este é teu lugar. Acaso sabes de uma besta conhecida por Quimera, que dizem viver por estas bandas?”
“Sei. E diria para manter-se longe desta, se achasse que minhas palavras a dissuadiriam.”
“Como posso encontrá-la?”

O homem pareceu suspirar levemente antes de prosseguir, embora tanto o suspiro quanto o seu respirar fossem quase inaudíveis.

“E o que farás à Quimera, espadachim?”
“Eu caço monstros. E foi o que me ofereci a fazer para o povo das redondezas. Ela é minha presa.”
“Pois bem.” disse-lhe Hain, em seguida apontando para uma trilha atrás de si e a sua direita. Era pequena e quase inteiramente coberta; à direita dela, a vegetação crescia frondosa com muitas flores de várias cores, e à esquerda, era um marrom uníssono, com grandes e velhas árvores de grossos troncos. “Se seguirdes por esta trilha, é certo que a Quimera cruzará teu caminho.”
“Então devo andar aqui e supor que, por chance, a encontrarei, então?”, Valina retrucou, sem poupar uma pitada de ironia, talvez julgando que ele fizesse o mesmo.
“Quimeras não se encontram, caçadora. Muito menos por chance.”

Dizendo isto, deitou-se de costas em uma rocha próxima e, levando as mãos à nuca, acrescentou:
“Durmo aqui também, se não te importas. E aconselho-te a fazer o mesmo, se desejas ainda empreender tua caçada.”

Assim o fizeram, e Valina dormiu um sono agitado, de sonhos em que seu pai e seus amigos tentavam, mais uma vez, dizê-la que não devia nunca caçar monstros, o que era trabalho para homens, e impedi-la de manusear a espada e armar o arco. Acordou num ímpeto e não viu sinal de Hain quando despertou, o que não a surpreendeu; arrumou suas coisas e seguiu pela trilha que ele indicou, impulsionada pelas palavras trazidas pelos sonhos.

Por um tempo a trilha continuava como começara, com dois lados bem distintos, e Valina cruzou com alguns habitantes de ambos os lados: os da esquerda eram sóbrios, de poucas palavras, educados e voluntariosos; os da direita, brincalhões, risonhos, falastrões, mas, com freqüência, subitamente ríspidos e mal-humorados. Quando indagados sobre a Quimera, os primeiros diziam-na que tomasse cuidado com a caverna ao fim da trilha; os últimos, que nunca tinham visto nem ouvido falar de tal besta. Ao final de um dia, porém, o lado esquerdo gradualmente cedeu espaço para as flores e folhas coloridas, e quando deitou-se para dormir, Valina já se via rodeada por elas.

Ainda na manhã deste dia, a trilha terminou em uma caverna, e como o povo da margem esquerda da trilha dissera-lhe que tomasse cuidado, ela supôs que o monstro lá estaria, e entrou com cautela, de armas à mão, enquanto descia na escuridão. Porém ao virar da primeira curva, deparou-se com o topo de uma enorme torre de prata, descendo rumo ao vão das paredes rochosas, que reluzia como a lua cheia e iluminava tudo com um brilho esplendoroso. Ela desceu até o portão, e bateu e exigiu falar com o senhor da torre. Ninguém lhe deu respostas, nem, aparentemente, desceu para falar – mas, quando ela virou-se de costas, ele já estava lá.