2.7.05

Perfeição

Há certos ódios meus que de maneira desmotivada tendem a assumir maior ou menor manifestação; ou motivada mas de forma imperceptível - o que, vá lá, dada minha percepção risível, não quer dizer grande coisa.

Esta semana quando ouvi um candidato a geniozinho dizendo que, se tinha uma coisa que a vida tinha ensinado a ele (ao longo de todos os 19 anos), era que o ser humano é imperfeito mesmo e isso não pode ser mudado, senti vontade de enfiar sua cabeça na parede e esmurrar até virar paçoca. Piorou um pouco quando fui comentar isso em tom irônico com um colega novo, e ele retrucou no ato que, ora, pensar assim não pode nos impedir de progredir.

O blog está então sendo forçado a assumir o posto de substituto de saco de areia, mas com o bem-vindo adicional de me ajudar a pôr a cabeça em ordem, sem falar na ilusão do público - como visto, tenho achado o público bom, o que muito me assusta. Então, senão vejamos porque ambos exemplares de homo sapiens são ou, ao menos, sabem com tremenda eficácia passarem-se por, completos idiotas.

Primeiro, o rapazinho já ganha o prêmio de imbecil presunçoso do ano pela tentativa de creditar-se com a invenção da roda. "Uma coisa que a vida me ensinou"? Especificamente a parte da vida em que ele assistia as aulas no primário, imagino. Ou mesmo um sermão do pai, mãe, tia, avó, carteiro, leiteiro, atendente da loja de conveniência do posto, vai ver até do irmãozinho mais novo: essa é mais velha que cagar sentado, espertinho, parte integrante da milenar herança cultural ocidental - aliás, acho q foi o João Ubaldo que já disse isso uma vez, mas não é incrível como se esquece que a cultura ocidental também é milenar?

O que nos leva ao ponto aonde eu queria propriamente chegar, esta maldita fascinação com os números, com a quantificação, o progresso, a comparação criteriosa absolutizada e, talvez o pior de tudo, a aculturação que faz com que a população em geral nem desconfie de que esse tipo de coisa foi desenvolvido num certo período e local da história do mundo e não nasceu do ovo.

"O ser humano é imperfeito" pode parecer uma afirmação muito simples, incontestável e evidente, se não for seguida da reflexão que lhe é obviamente decorrente: o que, então, é perfeito? Falha minha, não posso afirmar com proficiência que a idéia de perfeição como entendemos hoje não tem precedente nenhum no oriente, ou em outras culturas que não a grega clássica (palavra que, por sinal, também implica a idéia de perfeição), onde nasceu em estreita ligação com os conceitos de bem, beleza, ideal divino e toda a parafernália pitagórico-platônica-aristotélica. Vamos lá, você já deve ter lido qualquer comentário de um dos milhares de novos pseudo-intelectuais que, como eu, leram um pouquinho de Nietzsche e julgaram ser sua missão na Terra destruir a noção de perfeição conforme construída ao longo de nossa história: significa que estou correndo o enorme risco de repetir uma ladainha que já lhe seja velha conhecida. Mas, que diabo, repetição nos ajuda a guardar as coisas, então digo mesmo.

Não existe esse negócio de perfeição absoluta. "Você quer dizer que não existe no mundo real?" Não, palerma, quero dizer que não existe mesmo. Perfeição requer critérios, critérios requerem metas, e metas requerem anseios. Você, ser humano de perspectiva parcial e limitada, a não ser que seja o novo Buda, não vai conseguir criar um critério de validade absoluta para toda e qualquer ação ou estado do ser, que responda a todos os anseios, até porque não preciso nem explicitar o quanto isso é paradoxal e, você adivinhou, uma visão particular do conceito de perfeição. Pra dizer a verdade, não vai conseguir criar nem para uma ação qualquer, excetuando-se situações de especificidade momentânea - pense em coisas que dizemos corriqueiramente, como "fulano é o mais rápido do mundo", quando na verdade o que dizemos é "fulano foi o mais rápido no dia tal, em tal lugar, tal hora, correndo em tal pista, tal distância, com tal roupa", frase na qual também levamos em conta o estado de espírito dos competidores, presença de coisas como torcida, vento, número de gotas de suor que desceram por sua pele, enfim: coisas do momento. Uma medição atemporal e acircunstancial? Que eu saiba, só na matemática que, você já deve ter percebido, é um tipo bem particular e parcial de ficção.