20.4.05

Os Oito Copos - Oitavo

- Oi, Fernanda.
- Oi, psor. – ela sentou-se lentamente, e completou. – Fazendo?
- Estou montando uma pirâmide de latas vazias.

Na mesa havia sete latas, quatro na base, três na segunda linha.

- Ah. Emocionante.

A festa vazia era, ela pensava agora, até providencial. Afora Luciana e o próprio Alessandro, não havia ninguém ali com quem ela desejasse trocar notícias do presente ou reviver memórias passadas. Lê, Paulinha e Rétz não vieram, cada um por seus motivos, e até Picles, Zé Ruela ou a velha turma dos nerds ou não haviam chegado, ou não chegariam nunca. Lá estavam, por enquanto, apenas a tal Lara, de quem ela não se recordava de jeito nenhum, e o Pedro, que antigamente brigava horrores com o Rodrigo.

Pra não falar no próprio Rodrigo, é claro.

Tinha pensado horrores nele, ultimamente. Muito mesmo. Tinha a sensação urgente de que aquele reencontro, se acontecesse, aconteceria por algum motivo.

Tinha ligado pra Lê pra saber se ela iria, e ouvi-la novamente despertou uma memória do fim de seu primeiro namoro. Não do momento no qual ele realmente acabou, e sim de quando informou isto a Lê, que acabou sendo a primeira a saber. A reação dela agora era muito nítida em sua memória. Ela disse: “Como você deixou ele terminar contigo assim, sem fazer nada? O namoro de vocês era tão especial, eu não acredito que você vá deixar acabar! Como você vai deixar acabar?”

“Sou muito desapegada”, respondera-lhe Fernanda, à época. Desapegada.

Era de matar de rir.

- Me ajuda aqui? – indagou Alessandro, oferecendo-lhe a lata de cerveja em suas mãos.

Como ela deixou acabar?

- Não deixei. – Fernanda pensou alto.
- O quê?

Ela caiu em si novamente, ao som da pergunta.

- Nada, nada. – respondeu, e pegou a cerveja, mas não bebeu do pouco que restava. Olhou novamente na direção de Rodrigo. – Fessor, desculpa, mas cê me dá licença um instantinho?
- Não vai beber? – ele retrucou, como se fosse a coisa mais importante do mundo.

Ela não ouviu, já caminhava até Rodrigo. Ele a percebeu com antecedência, parecia já esperar por aquilo; por conta própria pediu licença para Pedro e foi ao encontro dela. Usava uma camisa xadrez por fora da calça jeans, um tênis branco, e tinha a cara limpa; não fosse pelo cabelo um pouco mais ralo e o olhar mais maduro, não estava muito diferente do que era 6 anos antes.

- Rod.
- Fê.

Trocaram dois beijinhos, com alguma cerimônia.

- Tudo bom?
- Acho que sim. Você?
- Não sei.
- O de sempre, então.

Ela espantou-se:

- De sempre?
- É, de sempre. Você sempre dizia isso. “Tudo bom?”, “não sei”.
- Dizia?
- Você não lembra?

Balançou a cabeça.

- Não.

Sentaram-se, ela, depois ele, num banco ao lado de um canteiro de flores amareladas; ele, assim que o fez, retomou:

- Então, o que foi?
- O que foi o quê?
- Você levanta do nada e vem falar comigo, tá na cara que você quer falar alguma coisa.

Ela foge com o olhar pra baixo. Ele, fixo-o na lateral do rosto dela.

- Hm.
- Além disso, eu ainda te conheço, Fernanda. O que foi?
- Vai parecer estranho pra caralho eu perguntar isso.
- O quê?
- Rod.

Ela vira-se, fita-o nos olhos.

- Por que a gente terminou?

Agora ele vira-se para a frente, fita o vazio, e ela quem, mantendo o olhar sobre seu rosto, prossegue:

- Cê não parece surpreso de ouvir essa pergunta.
- Não.
- Por quê?
- Eu tenho outra pergunta.
- Quê?
- Quando foi que a gente terminou?
- Como assim?
- Assim, quando foi que a gente terminou. Não lembro.
- Como não lembra? Foi perto da primeira fase do vestibular, na véspera do meu show... você me chamou para passar na sua casa, a gente brigou.
- Nesse dia?! – ele parecia, agora sim, surpreso. – Mas a gente não terminou nesse dia!
- Claro que terminou!
- Não, não terminou! Eu disse que sentia que o nosso namoro não tava mais valendo nada, aí você ficou calada. Disse que se continuasse assim, a gente ia ter que acabar, porque a gente se via de má-vontade, poucas vezes, e não tinha porque continuar se prendendo a um troço desse. E você disse que, na verdade, pra você era como se o nosso namoro já tivesse acabado muito antes, e só continuasse porque a gente ficava insistindo nele.

Era verdade. Ia ressurgindo em sua cabeça praticamente ao mesmo tempo em que ele falava, estivera lá o tempo todo sem que ela pensasse em procurar. E era exatamente o que tinha acontecido.

- Porque achava que ele tinha que ter um final apropriado, uma coisa bem marcante – Fernanda concluiu, bem baixinho – ou que ainda tinha muito pra aproveitar nele.

Ele levou a mão à boca, e começou a arrancar a pele da mesma.

- Você não disse isso, não.
- Não, não, só pensei. E escrevi, acho. Mas e depois?
- Depois, sei lá. Eu achei que a gente tivesse dando um tempo, mas você nunca mais ligou, não falou comigo, e eu pensei “bem, ela decidiu terminar”.

Arrancou um pedaço grande da pele, e deixou escapar uma leve expressão de dor:

- Eu tive muita raiva de você por isso. Por muito tempo. Acho que, se você vem falar comigo antes, eu virava a cara e continuava andando. Nunca achei que você. Sabe.

Olharam-se de novo, e ele completou:

- Tivesse feito isso sem querer.
- Me desculpa.
- Que desculpa, o quê, não é nada.

Ela sorriu, fez-lhe um carinho no cabelo, e abraçou-o com muita força, num abraço bem demorado, ao final do qual ela levantou-se e ele, finalmente reparando na lata de cerveja, perguntou:

- Dá um gole?
- Tem bem pouquinho. – responde Fernanda, passando-lhe a lata.

Rodrigo nem bem encostou os dedos, devolve-a.

- Nossa, tá quente, que horrível, joga isso fora.
- Vou devolver, essa latinha tem dono.
- Ah, é? E depois? Você não tá com cara de que vai ficar por aqui.
- Não.
- Vai pra onde?
- Pra um show, fazer uma surpresa boba.
- É, eu também não me demoro muito. É uma pena que a festa teja assim vazia, eu queria mesmo ter revisto o pessoal... e tadinha da Lú.
- É, mesmo. – pegou a lata de volta. – Dá um beijo nela pra mim?
- Dou. E beijo pra você também... não some, não.

Trocaram beijinhos nas bochechas novamente, mais um abraço, menor desta vez.

- Não, mesmo, eu ainda tenho uma puta saudade de você, Rod. Mas tu tá no meu orkut, não?
- De todo rumo eu tô na lista.
- Então, té mais.

Ela retornou para o salão, onde Alessandro observava, impassível, de mãos vazias. Sem dizer palavra, colocou a lata que tinha em mãos como início da terceira fileira, e assim que o fez, o outro cortou o silêncio.

- Você não bebeu.

Ela deu de ombros, aproximou-se e deu-lhe um beijo na bochecha.

- Tô indo, já, psor. Desculpa não falar direito, fica pra próxima.
- É uma pirâmide de quatro por quatro por um.
- Hein?
- Ainda faltam duas latas.
- Por mim, podem ficar faltando. Té mais, vê se não some!

E dizendo isso, Fernanda virou-se de costas. Sem sorrir profundamente, com passos até pouco vigorosos, e um pouco cabisbaixa, refletindo nas poucas palavras ali trocadas, no muito que significavam. Mas virou-se.

E foi embora.