13.4.05

Os Oito Copos - Primeiro

Fernanda deu uma última olhada no convite – era exagero dizer convite, visto tratar-se apenas de uma mensagem de e-mail impressa em folha A4 parcialmente cortada, metade dobrada e totalmente amassada – antes de botar os pés pra dentro do salão.

“Bom pessoal, agora vai! O reencontro da turma foi adiado pela última vez, para o dia 18 agora, a partir das 21 hs. e só acaba qdo a gente se acabar! O local ainda é o play aki da minha casa, q pra quem num lembra...”

Parou de ler: lembrava. Tinha a impressão de que os momentos que tivera lá, por mais anos que se passassem, jamais ficariam distantes, e, embora um ou dois detalhes da decoração ou dos arredores tivessem mudado, ainda era basicamente o mesmo salão de festas, o mesmo playground. Sentia que, mesmo dali a seis décadas, poderia descrever em detalhes o salão a seus netos, que era meio que parte do que ela entendia por “eu”.

O play em si era grande. Havia agora uma piscina, de cara pro elevador, espremida entre a parede e a quadra, que pelo visto ainda era imunda e pouco usada – provável conseqüência do hábito perpétuo de alguns moradores jogarem água e ovos na direção de quem o fazia. O chão era claro, meio bege, e a maior parte da área, coberta; o que era uma benção de dia, mas, no momento, só deixava tudo abafado, piorava o calor já absurdo e fazia Fernanda pensar no custo em suor de sua calça comprida.

O salão era pequeno, escuro, moldado pelas paredes na forma de um “L”. Estava quase exatamente igual à festa de 15 anos da Lú: uma mesa em frente à entrada com salgadinhos, o equipamento de som na outra ponta, algumas mesas de plástico – com as mesmas toalhas de pano azuis – espalhadas entre uma coisa e outra, encostadas na parede. E quase ninguém presente, ainda; nem mesmo a própria Luciana, que organizara a festa, ou o Picles, que para o desespero de Fernanda, ia discotecar. No salão de festas apenas Alessandro, seu antigo professor de História, que ela jamais imaginaria estar presente, sentava-se em uma das cadeiras, de costas para a parede, e bebia uma lata de cerveja.

- E aí, fsor! – ela se aproximou, sorrindo. – Não sabia que cê vinha!
- Oi, Fernanda. – ele tentou, o melhor que pôde, sorrir, mas sua expressão cabisbaixa acabou por alterar-se pouco. Ela manteve-se animada o melhor que podia.
- Fazendo?
- Estou montando uma pirâmide de latas de cerveja vazias.

Não havia nenhuma lata na mesa.

- Pirâmide, é? – ela riu. – É um idealista!
- Me ajuda aqui?

Ele lhe estendeu a lata, que tinha apenas uns poucos goles sobrando; ela despejou o conteúdo garganta abaixo e depositou o recipiente vazio no pano azul da mesa. Alessandro fez uma expressão de satisfação, e depois, lançando um olhar ao redor do salão, comentou, numa puxada meio deslocada de assunto:

- O irmão da Luciana? Sabe, ele foi um grande amigo meu, tempos atrás. Eu vinha muito aqui.
- Porra, jura? Que bizarro! Cadê ele, taí ainda?
- Mudou. Acho que tudo sempre muda, só eu continuo igual.
- Arrãaaam... E a Lú?
- Lá dentro.
- Ahn. É, bem. E o. Hã.

Silêncio incômodo.

- Onde tem mais dessa cerveja, psor?
- Fernanda, até eu consigo dizer o que você quer me perguntar.

Suspiro.

- Tá. É. Meio óbvio. Dã.
- Sim.
- Ele ainda não chegou, né?
- Não.
- Hm. Então, bem. E a cerveja? Eu acabei não trazendo a minha, sabe.
- Você não veria nem que estivesse do seu lado. – respondeu, e apontou para a porta ao lado da mesa, que sem dúvida levava à cozinha, onde haveria a geladeira.
- Valeu.

Foi apanhar a lata. Pensando bem, tinha se preocupado e criado expectativa à toa. Dificilmente algum de seus velhos amigos, Rétz, a Lê ou a Paulinha, viriam, e a Lú com certeza teria se transformado ainda mais numa páti mala, e ela só iria esbarrar num bando de playbas inúteis que ficariam estranhando seu traje de calça e suspensório e olhando torto. E Rodrigo não viria, também. E ela já estava se condicionando à idéia de que iria passar as próximas horas bebendo e jogando conversa fora com Alessandro.

Então ouviu uma voz familiar e deixou a cerveja cair no chão. Não esperava uma reação tão forte de si mesma, era como se seu coração ricocheteasse pelas costelas e o estômago tentasse se enrolar na pele da barriga. Não sabia se devia se alegrar ou morrer de medo, ir correndo pra lá e dizer que morria de saudade ou passar calmamente pela porta, não sabia nem se apanhava a cerveja do chão ou a deixava lá. Apanhou. Correu até a porta, mas deteve-se quando o viu.
Era o Rodrigo, sim.
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"continua"...