19.3.05

Shakuhachi

Katsuro afastou o par de folhas secas da face, com o maior esforço que já fizera para mover algo tão leve. Era um gesto absolutamente inútil, claro. Podia ouvir o farfalhar de dúzias e dúzias de outras folhas exatamente iguais a seu redor, sentir o vento soprando em seu rosto, pacientemente desfazendo o nó em seus cabelos, e tinha a impressão de que breve seu corpo inteiro estaria coberto por elas.

O sangue em sua mão esquerda já tinha gelado. E Inoue ainda estava lá, a seu lado, talvez sentado.

- Hideaki-san? - indagou.
- Sim. - a voz veio de sua direita, não muito acima do chão. Sentado, com certeza.
- Porque você permanece aqui?

A melodia suave do shakuhachi foi sua única resposta.

Katsuro buscou apoio ao seu redor, lembrando-se de que havia uma pedra não muito distante - provavelmente o mesmo local onde agora Inoue sentava-se. Deixou que a música e a lembrança o guiassem à superfície sólida da rocha, que, pensava, se não lhe parecia tão fria, era apenas porque o calor já abandonava seu corpo.

- Hidea - um pigarro ensanguentado o interrompeu momentaneamente - Hideaki-san.

Nada.

- Hideaki-san. Como você consegue tocar isso?

A música parou, não subitamente, mas porque chegava já a seu final.

- Você não é monge. Nenhum ensinaria a você.
- Palavras duras. - Inoue, afinal, respondeu.
- Nenhum samurai ensinaria você. Nenhum ensinou. A sua postura. Não tem nenhum estilo. Você não tem nenhuma conduta, não segue, nada. Não fez uma saudação.
- Poupe seu fôlego e medite, Morita.
- Não. Não. Você vai me dizer. Como consegue, como pode.
- Como pode o quê, Katsuro-kun?
- Hideaki-san. Porque. Por que você permanece aqui?
- Poupe seus últimos momentos do delírio, Katsuro-kun. Você não merece isso.

Não pôde segurar o riso.

- Mereço? Não mereço.

As palavras não lhe acompanhavam o raciocínio, tinham o peso multiplicado pela dor. Katsuro queria dizer-lhe que, se merecer tivesse algo a ver com aquilo, era Inoue quem estaria deitado no chão naquele momento, morto e devidamente velado, sem sofrimento adicional. Katsuro não reservaria para ninguém aquilo pelo que passava agora. Ele era um guerreiro honrado, e tinha aprendido a respeitar seus inimigos. Ah, sim. Tinha aprendido muito.

Dedicado a vida inteira, inteira, toda ela, ao Bushido. Treinava desde os 7 anos de idade. Estivera com os melhores mestres, enfrentara as mais duras provações a que eles o puseram. Uma vez, a pedido de Kagemura sensei, passara dois meses na floresta, sozinho e desarmado. Matou um tigre com uma katana de ossos que poliu sozinho. Subiu um monte de 50 metros com a mão esquerda...

- ... amarrada. Depois de um dia inteiro sem comida e bebida. Você sabe o que é isso, Hideaki-san? Sabe qual é a sensação?
- Não.

Começou a procurar por oponentes valorosos, juntamente com Matsumoto. Foi logo depois de Sekigahara. Já tinham estado em muitas guerras, e em nenhuma encontraram oponentes realmente valiosos. Separaram-se. Eram 1 ano e 7 meses depois, já tendo Katsuro derrotado ao menos uma dúzia de valiosos duelistas em combate, alguns a mando de seu Tono, quando recebeu a notícia de que Matsumoto morrera pela espada de um andarilho.

- Hideaki-san. Você não é ronin. Não é?

Inoue Hideaki. Filho de um criado dos Morita. Katsuro lembrava-se bem dele, com os cabelos longos e muito lisos desde pequeno, sempre sério. Brincara com ele, apesar de ser um tanto frustrante, já que ele não gostava de brincar de samurai. Lembrava-se de vê-lo, de dentro do dojo, Hideaki sempre deitado em cima de uma árvore, fitando o horizonte enquanto ele treinava 6, 7 horas por dia. Um dia, quando ambos tinham pouco mais de doze anos, Hideaki sumiu; não tinha ao menos um sobrenome nessa época. Podia-se apenas especular como ganhara um.

Katsuro o rastreou, em parte porque queria mesmo vingar-se pelo amigo morto, mas também por curiosidade: afinal, que tipo de homem teria se tornado um vagabundo como Hideaki? Teria Matsumoto se descuidado? Teria ficado mais fraco com os anos - enquanto Katsuro se fortalecia? Na verdade, Matsumoto sempre fora mais fraco que ele.

Morrera com a perna cortada fora pela espada de Inoue, numa briga em uma estalagem. O dono disse a Katsuro onde encontrar o assassino e como identificá-lo, mas negou saber sua origem, estilo ou motivos. Contou que brigaram porque Matsumoto recusara-se a pedir desculpas após derrubar-lhe o saquê, mas não disse como se deu o duelo, nem porque fora permitido que seu amigo sangrasse pela perna até a morte. Agora já podia imaginar a cena.

Marcou com Inoue na estrada à beira da vila, e ele surgiu acompanhado da melodia do shakuhachi, em suas vestes negras e vermelhas, alvo, magro, o mesmo rosto sério. A aparência de um frouxo, mas Katsuro não subestimaria nunca um oponente. Trocaram poucas palavras, e Hideaki nada lhe respondeu ao ouvir sua intenção de matá-lo. Tampouco sacou a espada.

- Eu não vi.
- Eu sei.
- Eu nem ao menos vi. Onze anos de Iaijutsu e eu nem vi.

O cabelo solto de Inoue subindo-lhe por sobre o rosto fora a última coisa a passar por seus olhos, antes que a visão desaparecesse num borro escuro e levemente avermelhado. A dor alcançou-lhe apenas no segundo golpe, que não trespassou-lhe o ombro como era de se esperar, mas apenas cortou-lhe na altura do peito.

Ganmen Ate. Rápido demais. Saído sem nenhuma postura, um movimento até deselegante. Inoue segurava a bainha como quem carregava um graveto. Enquanto caía no chão, já sem condições de lutar, e compreendia que seus olhos haviam sido cortados por um primeiro ataque que ele não fora capaz de perceber, Katsuro entendeu também o quão melhor seu oponente era. Em uma luta onde as diferenças são menores, um descuido pode levar à vitória; mas no seu caso, somente um milagre poderia ter decidido em seu favor. Inoue tirara-lhe os olhos sem nenhum esforço. Deixara-o lá para sangrar até a morte porque quis, podia muito bem tê-lo matado antes.

O filho do criado.

- Não é justo. A minha vida inteira. Como pode você. Tocar shakuhashi? Rápido demais.

Hideaki parou de tocar, e declamou:

"As folhas caem sempre no outono
O homem não pode ver:
O tigre é que mata sua presa"

Hai-kai?

- Quem... onde?
- Eu. Agora.
- Hideaki-san. Eu. Mate-me.
- Já fiz isso.
- Não. Não! Mate-me

A tosse de sangue o interrompeu.

- Como você -
- Achei no chão de um templo abandonado. Aprendi sozinho.
- O quê? O shakuhachi? A espada?

Nada.

- Hideaki-san.

O melodia voltou a tocar.

- Porque você permanece aqui?