16.4.05

Os Oito Copos - Quarto

- Professor!

Fernanda tinha se sentado há poucos minutos numa das mesas de plástico do salão de festas quando a mão de Alessandro, seu antigo professor de História, que ela jamais imaginaria estar presente, a tocou no ombro. Só então reparou que ele tinha estado o tempo todo a pouco mais de uma mesa de distância, bebendo uma lata de cerveja, sentado de costas para a parede.

- Oi, Fernanda. – ele tentou, o melhor que pôde, sorrir, mas sua expressão cabisbaixa acabou por alterar-se pouco.
- Puta merda, cê me deu um susto! – parou e observou-o. – Aliás, que cê tá fazendo aqui parado no canto?
- Estou montando uma pirâmide de latas de cerveja vazias.

Na mesa havia 3 latas vazias.

- Bem, você já tem a base. – ela riu, decepcionando-se em ver que ele não ria de volta.
- Me ajuda aqui? – perguntou Alessandro.

Ele lhe estendeu a lata em suas mãos, que tinha apenas uns poucos goles sobrando; ela despejou o conteúdo garganta abaixo e depositou o recipiente vazio no pano azul da mesa.

Houve um breve silêncio antes que Fernanda decidisse externar seus pensamentos:

- Professor, você ainda mantém contato com seus amigos antigos? Tipo o –
- O irmão da Luciana? Sabe, ele foi um grande amigo meu, tempos atrás. Eu vinha muito aqui.
- É, o Patrick! O que houve com ele, se mudou, né?
- Mudou. Acho que tudo sempre muda, só eu continuo igual.
- Não, eu mudei. Acho que mudei. Não é como, assim, uma coisa que eu fiz por querer, eu sinto quase como se tivesse sido jogada de um lado pro outro. Mas ao mesmo tempo, eu sinto que fiz de propósito isso, me afastei dessa vida do colégio, dos meus amigos da época. Eu. Essa sensação que fica me impregnando na cabeça.
- Lá dentro.
- Você também não... Como se pode dizer? Eu não quero me intrometer.
- Fernanda, até eu consigo dizer o que você quer me perguntar.
- Então. É isso, né? Desculpa dizer assim, mas. Você também se sente assim, também se afastou dos seus amigos, da época.
- Sim.
- A gente é parecido, né. Não só nisso. Não parece, mas é.

Paulinha passou com mais uma cerveja, que Fernanda polidamente aceitou, sem dizer nada. Sua amiga mostrou-se meio decepcionada, mas seguiu de volta para junto dos demais. Ela e Letícia aparentemente ainda eram unha e carne, e ainda viam muito Luciana, que era colega de curso da primeira na arquitetura da Puc. Fernanda chegou a participar de um princípio de conversa entre as três, antes de sentar-se ao lado de Alessandro; sentiu-se abissalmente excluída e abandonou-as rapidamente com uma desculpa tola. Afora isso, conversara rapidamente com Rétz, tendo ficado logo sem assunto e sendo pouco discretamente abandonada pela conversa com um dos antigos nerds, que agora, como o próprio Rétz, lidava com teatro – eram, pensava, ambos um pouco cheios de si demais para renderem uma conversa realmente interessante. Mas era um pouco mais que isso. Ela simplesmente não se importava com o que ele, ou qualquer um ali, fazia ou deixava de fazer.

- Sabe como eu me sinto? – tornou a falar. – Às vezes, é como se eu só tivesse vendo a vida passar, sentada na frente de uma tela ou sozinha num ônibus, num trem. Eu fico olhando, as pessoas entram, as pessoas saem, parece. Você já viu Evangelion? Um desenho japonês, sabe?
- Não.
- É que tem um personagem que. Ah, deixa pra lá.

Tomou um gole da cerveja antes de voltar a falar.

- Teve motivo pra isso? Você? Quero dizer, nós dois, quero dizer.
- Você não veria nem que estivesse do seu lado. – concluiu Alessandro, e apontou com a cabeça na direção de Rodrigo.

Foi como um estalo. Rodrigo conversava com uma garota cujo nome Fernanda não recordava, que tinha levado o filho de um ano e pouco à festa, mas na verdade uma grande roda havia se formado em torno deles – e ele eventualmente trocou ao menos algumas palavras com cada um, era amigo de cada um, mantinha contato com cada um. Ele ajeitava os cabelos longos e comentava sobre o mestrado que principiava a cursar em filosofia.

Ocorreu a ela que nunca, ao longo dos dois anos de seu primeiro namoro, haviam tido sequer uma briga. Mais adiante aconteceria com mais freqüência o oposto, mas não com Rodrigo; com ele nunca havia brigado, nunca conseguira brigar, mesmo nos piores momentos. Nem quando ele a deixou plantada esperando por uma hora e meia na porta do Empório, nem quando ele já entrou em seu quarto berrando com raiva e ciúme do Lelo, ou quando deram um tempo por conta das cartas da Elisa, até mesmo no dia em que terminaram, a resposta dela variou apenas de um sorriso otimista a um leve biquinho de resignação.

Agora lembrava nitidamente do dia em que terminaram. Foi perto da primeira fase do vestibular e na véspera de um show, e ele a chamou para passar na sua casa. Ele a chamou. Nem se deu ao trabalho de ir até ela. E a recebeu com um beijo, para meia hora depois conduzi-la até a porta. Ela não chorou, não comentou, meio que já pressentia. Não era que não sentisse nada. Pelo contrário, por dentro explodia de raiva, decepção, ciúme; e mais tarde, com outros, também sentiu, e brigou, chorou, gritou. Mas desde aquela época, sentia-se anestesiada. E agora já imaginava o porquê.

Tinha falhado miseravelmente em fugir dele durante oito longos anos. Pois o que lhe parecia é que a fuga era necessariamente para os braços de outro. Mas nada era assim tão simples, e na verdade nem poderia ser assim tão fuga. Os passos deveriam ser determinados, não rápidos, e somente seus.

Tomou um gole grande da cerveja e levantou-se da cadeira.