15.4.05

Os Oito Copos - Terceiro

- Um brinde! – Rétz berrou, levantou a lata de cerveja.
- Caralho, outro? – interrompeu Letícia, que apesar da expressão de tédio, divertia-se muito vendo o velho amigo.
- Ao quê, dessa vez, Rétz? – perguntou Fernanda.

Ele se pôs de pé, sorrindo afetado, depois voltando à expressão séria antes de proclamar:

- A velhos amigos!
- De novo. – lamentou Letícia; mas levantou-se junto da outra e brindaram assim mesmo.

Sentaram-se; Rétz ajeitou o brinco na orelha esquerda enquanto o fazia. Súbito, esbugalhou os olhos e puxou Fernanda pelo braço.

- Ih, menina! Olha quem tá ali, olha!
- Nossa, aquele não é o –

Alessandro, seu antigo professor de História, que ela jamais imaginaria estar presente, bebia uma lata de cerveja, sentado de costas para a parede.

- Alessandro!
- Quem? – intrometeu-se Letícia.
- O professor de História, não lembra dele? – respondeu Fernanda.
- Ah... é.
- Ele continua igualzinho, uma gracinha. – emendou Rétz.

Letícia deu-lhe um tapa no ombro:

- Rétz!
- Que foi, menina?! É a mais pura verdade.

Fernanda ria:

- Eu não acredito, Rétz, você era a fim do professor de História desde o 2° grau?
- Não, a fim, assim, não, mas. Ele tem jeito de quem tem um caralho enor –
- Putaqueopariu, Rétz, seu tarado! – cortou Fernanda, ainda rindo.
- Ora, tarado! Sou só sincero. E o que você queria, que eu tivesse tesão de quem? De você? Da Lê? Do coordenador?
- Rétz! – agora Letícia interrompia.

Fernanda levantou-se:

- Vamos lá falar com ele!
- Hein? – Rétz quase engasgou.
- Falar o quê? – indagou Letícia.
- Sei lá, porra, qualquer coisa!
- Ah, pra quê. Eu, hein.
- Como é, Rétz, num vem?
- Fala sério, mulé!
- E que houve com a caralho enorme?
- Não fale assim comigo, menina, sou um rapaz muito tímido!

Risos em profusão.

- Não, sério, eu vou mesmo dar uma palavra com ele, eu gostava dele.

Letícia consegue dizer, entre um riso e outro:

- Não, não, o Rétz é que gostava dele!
- Tá, então vou só eu, então.

Ela levantou, dirigiu-se até lá e foi se aproximando sem aviso. Ele parecia não estar ciente dela, mas, antes que ela tivesse a chance de falar, cumprimentou-a:

- Oi, Fernanda. – tentou, o melhor que pôde, sorrir, mas sua expressão cabisbaixa acabou por alterar-se pouco.

Ela deu um pequeno recuo de surpresa antes de responder.

- Oi, oi, é, Alessandro. Professor. É, tudo bem? Como você vai? Quer dizer, posso interromper, cê num tá fazendo nada, né?
- Estou montando uma pirâmide de latas de cerveja vazias.

Havia duas latas vazias na mesa.

- É, você é ambicioso. – ela sorriu.
- Me ajuda aqui?

Ele lhe estendeu a lata, que tinha apenas uns poucos goles sobrando; ela despejou o conteúdo garganta abaixo e depositou o recipiente vazio no pano azul da mesa.

- Sabe que eu nunca bebo sozinha? – pensou em voz alta, já sentada ao lado dele. – Eu comecei a beber numa festa aqui na casa da Lú. Mas por isso passei a só beber com mais alguém, quer dizer, acho que é por isso, né. A gente tipo, era amigona.
- O irmão da Luciana? Sabe, ele foi um grande amigo meu, tempos atrás. Eu vinha muito aqui.
- Então cê conhece ela faz tempo né? Ela com certeza mudou muito. Era meio pati, mas depois daquela viagem de mochileira, virou outra pessoa.
- Mudou. Acho que tudo sempre muda, só eu continuo igual.
- Nem tudo muda, as pessoas continuam sempre as mesmas no fundo.
- Lá dentro.
- Sim, vê, eu continuo bebendo só entre amigos, e só pra celebrar alguma coisa, e de preferência, pra esquecer. E você vê, eu ainda –
- Fernanda, até eu consigo dizer o que você quer me perguntar.
- Consegue. É. Ele tá aí e eu não consegui falar com ele. Não quero. Se eu faço isso, vou acabar só. Cê entende o que eu quero dizer?
- Sim.
- Sei que não posso sair daqui sem dizer alguma coisa pra ele, mas não sei o que é, não vou conseguir dizer enquanto continuar nessa festa, eu e meus amigos. Não quero quebrar o clima. Tipo, não deve ser o momento adequado, né?
- Não.
- Pois é. Preciso de mais bebida... vou lá pegar... e. Cê viu a Paulinha?
- Você não veria nem que estivesse do seu lado. – ele apontou para Paula, que entrava pela porta da cozinha.
- Ah, valeu! Té mais, fsor!

Fernanda andou até a cozinha para, unindo o agradável ao agradável, encontrar a amiga e pegar sua cerveja. Paulinha tinha abandonado as camisetas escuras e calças jeans de outrora; vestia-se de branco, saia e blusa, deixara o cabelo passar um pouco do pescoço. No peito, a logomarca de um congresso de pedagogia. Conversaram durante uns bons quinze, vinte minutos, ali na cozinha mesmo, acompanhados durante um breve período de tempo por Luís, que tinha sido calouro dela com um período de diferença, na Puc – e as abandonou para encontrar-se com um dos poucos presentes do velho grupo nerd da sala de aula.

Paula confessava a Fernanda estar tendo um princípio de envolvimento com ele quando, esticando os olhos à frente, se interrompeu.

- Ih.
- Que fo – a outra ia indagando e desistiu, vendo os olhos de Paula mirando Rétz meio ao longe, conversando com Rodrigo. – Ah, não, fala sério, vocês dois ainda tão brigados? De nem se falar?
- Não, Fê, olha vai lá. Eu perdi a paciência com a bicha louca querendo ser estrela. Aprendi que é melhor nem chegar perto.

Fernanda mirou Rodrigo, demoradamente.

- É, né.

Ele a olhou de volta, à distância. Vestia uma calça jeans velha e meio rasgada, tinha a barba grande demais, parecia meio maltratado, como se não tivesse tido tempo de se arrumar para ir a festa. Fez uma cara esdrúxula, de quem não sabe bem como agir, e foi embora.

- Ele ainda gosta de você. – concluiu Paulinha.
- Gosta nada.
- Eu falei com ele. Ele queria saber de você e não sabia como perguntar.
- E o que cê disse?
- Que não sabia.
- Hm. Mas, hã.
- Não, ele não tá muito bem, não. Largou a faculdade, saiu de casa pra viver de um bico maluco num estúdio e acabou de voltar, e agora arrumou um trabalho quase escravo.
- Sei.
- Vai lá, a Lê tá chamando. A gente se vê depois. Diz isso pra ela, também.

Isto dito, virou-se pra trás e seguiu na direção para onde Luís tinha ido, e onde Luciana também estava.

- Graças a Deus, Fê! – Rétz chupou um gole de caipirinha pelo canudo. – Aquela vadia saiu de perto de você! É contagioso!
- Putaqueopariu, Rétz, eu simplesmente não consigo acreditar que cês dois continuam brigados! – retrucou Lê.
- Até aí, eu ainda nem consigo acreditar que ele é gay. – finalizou Fernanda.
- Porque é boba. Bichice tá no sangue, minha filha. Aliás, no genoma!

Letícia ria.

- Lá vai ele.
- Nasci bicha, vou morrer bicha, nunca duvide disso!
- Beleza, beleza. – respondeu Fernanda, deu mais um gole na cerveja que apanhara enquanto se sentava. – Mas essa de cê e a Paulinha não se falarem, deixa isso de lado, isso já era, é passado.
- Ó quem fala! – exclamou Letícia.
- Que tem eu?!
- Muito conveniente, você só voltar depois do Rodrigo sair, não é?

Rétz concordou com a cabeça, aproximou-se de seu ouvido antes de comentar:

- Ele ainda gosta de você, sabe.
- Por que todo mundo fica dizendo isso?
- Eu já tô me achando muito sozinha pra querer que você fique, menina. – respondeu Letícia, tornando a beber depois. Rétz afagou-lhe a cabeça.
- Tadinha, crise de fim de namoro. Mas estamos todos sozinhos. Você, com seu namoro acabado, a Fê, que tem um, como é. O passado assombra ela, tipo volta pra persegui-la, uma coisa assim de efeito. E eu, que só sou querido pelos meus dotes sexuais, sem ninguém que me –
- Putaqueopariu, Rétz! – Letícia o interrompeu, estapeando-lhe.

Fê tentou xingar, por entre risos:

- É, fala sério, vai tomar no cú!
- Deus te ouça, querida.

Muitos risos. Rétz ao final prosseguiu:

- Enfim, minhas queridas. Está faltando álcool aqui, isto é uma festa. O álcool e os amigos são pra esquecer a solidão e não lembrar dela. Vamos brindar a isso de.
- Um brinde ao álcool! – levantou-se Fernanda.
- Não me interrompe, piranha! – berrou Rétz. – Como eu ia dizendo, aos velhos amigos!
- Aos amigos! – repetiram os três, enquanto batiam as latas de cerveja umas nas outras, em torno da mesa circular.

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"continua"...