17.4.05

Os Oito Copos - Quinto

Andou com passos rápidos até a beira da piscina, onde estavam os dois casais. Eles compartilhavam uma mesma mesa redonda e conversavam animadamente – dera sorte, pensou, e aproximou-se deles vestindo seu melhor sorriso, sendo recebida da mesma forma.

Como ela mostrou dúvida sobre aonde se sentar, o próprio Rodrigo levantou-se e apanhou uma cadeira próxima, colocando-a entre si e Paula e oferecendo o lugar a Fernanda, que, deixando escapar um cisco de aflição pelo olhar, acabou aceitando.

Fizeram, em vão, o melhor que podiam para deixá-la à vontade: perguntaram-lhe sobre sua vida, pediram sua opinião nos assuntos, buscaram lembranças em comum da escola. Falha na inserção social consumada, desistiram e retomaram seus assuntos casuais – festa de amigos em comum, show de bandas preferidas, último cinema, concurso público, a rotina peculiar do escritório de publicidade onde Rétz estagiava, com todas suas loucuras e apelidos estranhos, professores babacas de Letícia e Rodrigo (que eram colegas de turma na engenharia).

- Porra, é um velho tarado, aquele filho da puta! – ele xingava, por sobre as altas gargalhadas do restante da mesa.
- Nada, Rod, ele é é gay, já disse pra você, tá na cara que é. – interrompeu Letícia.
- Gay porra nenhuma. O jeito como ele te olha!
- Já te disse que naquele dia ele tava reparando na minha saia.
- Na saia! – Rétz explodiu em gargalhadas.
- Ele veio comentar comigo depois! – protestou Letícia.

Eles até chamaram o Mateus, um dos integrantes da velha turma dos nerds da sala, pra promover a integração da mesa – quem sabe, talvez, fazendo melhor companhia à Fernanda. Ele parecia freqüentar círculos sociais semelhantes aos dos outros 4 e, de fato, rapidamente pôde se inserir na conversa, conseguindo até arrancar algumas frases e sorrisos dela.

Rodrigo chegou a comentar como ela estava diferente, e todos concordaram, Paulinha acrescentando que a Fernanda que conhecera ria o tempo todo. Mas a própria sabia que ainda ria muito normalmente, que não era ela que tinha mudado – muito pelo contrário. Eles é que tinham mudado.

Talvez em algum momento ela tivesse se deixado enganar, pensando que o fato de eles terem mantido contato entre si, e com os demais colegas de colégio, os mantivesse apegados àquele estado anterior de coisas, àquele tempo. Mas estaria errada. Eles tinham mudado tremendamente, e aqueles não eram o Rétz, nem a Lê, a Paulinha, ou o Rod, caramba, nem mesmo o Mateus que ela conhecera no segundo grau (o Mateus que ela conhecera cagaria nas calças de vergonha antes de conseguir contar uma piada a uma garota).

- Como, qual espinha? – a voz de seu antigo namorado cortou-lhe os pensamentos. – Essa aqui!? – completou, e com um grande estalo, espalmou a mão esquerda na coxa direita de Letícia.
- Ai! – ela reagiu. – Isso doeu, porra, Rod! Doeu pra –

Um beijo de Rodrigo a interrompeu. E prosseguiu por mais tempo do que o silêncio que surgiu com ele, acompanhado depois pela conversa amigável dos outros três ocupantes da mesa de plástico, que em tudo o ignoravam. Uma Fernanda muda observava, e em parte sentia-se satisfeita, em parte surpresa, de ver que seu ex não saiu rapidamente do beijo para um sussurro ao pé do ouvido, como fazia antigamente. Pôde suportar a cena somente até o momento em que Rétz e Paulinha decidiram acompanhar o casal de amigos com outro beijo; então se levantou e retornou para o salão de festas, sem que os quatro reparassem.

No caminho pensou que talvez devesse ter sido no mínimo um pouco menos rude com Mateus, que chegou a tentar falar alguma coisa pouco antes dela se levantar; mas voltando-se na direção dele, que agora a seguia ao longe, irritou-a pensar que ele provavelmente só queria aproveitar o momento para abordá-la, formando um novo casal. Ele a fitou de relance uma última vez e mudou de rumo, praticamente fugiu. Foi então que ela levou as mãos ao rosto, e percebeu nele as contrações que costumam levar ao choro.

Aquilo a perturbou profundamente.

Ela seguiu rente até a parede do canto assim que percebeu a presença de Luciana, conversando com um homem sorridente de rosto sardento. Não queria conversa com ninguém. Sentou-se o mais de frente para a parede que podia, tentando barrar a passagem das lágrimas, equilibrar a respiração. Repetiu à exaustão o mantra “merda”, até sentir as primeiras gotas escaparem por entre as pálpebras; então perdeu o controle dos soluços, que saíram saltitando por sua garganta feito sapos. A irritação virou fúria, e resolveu tentar, por conta própria, deter tudo com um murro vigoroso em uma das inocentes mesinhas estacionadas ao lado.

A música alta abafou o estalar e tremer do plástico, que se fez acompanhar imediatamente do ruído mais leve da queda de alumínio, e do despejar de líquido borbulhante; mas ela não teria levantado os olhos para ver do que se tratava, se uma voz não se sobressaísse no meio de tudo.

- Oi, Fernanda.

Alessandro, seu antigo professor de História, que ela jamais imaginaria estar presente, sentava-se de costas para a parede. Ele tentou, enquanto a fitava, o melhor que pôde, sorrir, mas sua expressão cabisbaixa acabou por alterar-se pouco.

- Fe. Fessor? Ai meu deus, me desculpa, eu. Não tinha visto você aqui no canto, eu não queria atrapalhar, é. – a lucidez retornava aos poucos, embora as lágrimas ainda lhe turvassem muito a vista. – O quê. O quê você tá fazendo aqui sozinho?
- Estou montando uma pirâmide de latas de cerveja vazias.

Na mesa, duas latas permaneciam em pé, outras três na horizontal, uma quieta e vazia, uma rolando na direção da parede, e a última deitada, estática, vazando um bom bocado de seu conteúdo.

- Me ajuda aqui? – perguntou Alessandro, secando o líquido com um guardanapo. Fernanda rapidamente pegou outro e ajoelhou-se para tentar limpar o chão, para onde o líquido também se esvaíra.
- Ai, me desculpa, puta que o pariu, desculpa mesmo!

Do outro lado, o rapaz de rosto sardento andou na direção deles, sendo prontamente interrompido por um gesto amenizador de Alessandro, e retornando para de onde veio.

- Eu não sujei você, sujei?

Sujara, mas ele nada disse a respeito; apenas jogou os guardanapos úmidos no lixo mais próximo e aprumou-se de volta na cadeira, deixando as latas como estavam.

Fernanda ficou ali alguns instantes olhando-as, qualquer espécie de força invisível que os olhos de Alessandro emitiam impedindo-a de colocá-las de pé novamente. Até levantou a mão esquerda com essa intenção, mas deteve-se e acabou apenas se apoiando na mesa com ela, enquanto discretamente enxugava o rosto com a direita, tentando aliviar o desconforto com uma pergunta:

- Você conhece o Patrick?
- O irmão da Luciana?
- É.
- Sabe, ele foi um grande amigo meu, tempos atrás. Eu vinha muito aqui.
- Eles já saíram? Tô morta de vergonha. Onde eles tão? – olhou ao redor.
- Lá dentro.
- Mas a cozinha não era pra cá? Mudou de lugar?
- Mudou. Acho que tudo sempre muda, só eu continuo igual.
- Não. Eu também continuo. Eu também.

Alessandro, ela teve impressão, pareceu esboçar um gesto em sua direção, talvez pensando em passar-lhe a mão pela cabeça ou qualquer outro carinho de cunho semelhante. Mas devia ter sido impressão.

- Você não acha que. Caralho. – ela se esforçou para passar por cima dos soluços. – Você sabe a história toda, psor. Eu. Eu perdi ele, mas.
- Fernanda, até eu consigo dizer o que você quer me perguntar.
- A gente pensa igualzinho, né? – esboçou um sorriso.
- Sim.
- Não podia ter sido de outro jeito. Já faz tanto tempo, eu não achei que ainda me importasse. Eu não tenho –
- Não.
- Não tenho culpa. Eu perdi ele, mas.

Voltou a chorar. Aconteceu bem mais rápido, dessa vez; faltaram-lhe forças para resistir, talvez porque já tivessem sido gastas antes. E agora ela desejava mesmo que Alessandro estivesse lhe passando a mão pela cabeça e lhe fazendo qualquer carinho daquele tipo, ou qualquer um. Queria ela mesma procurar recostar-se nele, e o teria feito se a mesa não a impedisse.

- Perdi ele, pra sempre.

Em lugar disso, esmurrou a mesa novamente, e de novo e de novo, até que três das cinco latas despencassem ao chão.

- Onde é que eu vou achar ele de novo? – cessou os murros.
- Você não veria nem que estivesse do seu lado. – respondeu Alessandro.

E o celular dela tocou.