19.4.05

Os Oito Copos - Sétimo

- Não, não, de jeito nenhum! – respondeu Rodrigo, cambaleando ligeiramente para trás. – Eu já misturei o vinho com caipirinha, se eu bebo mais uma lat – voltou-se para trás depois que percebeu estar pisoteando a tal Lara, de quem Fernanda não conseguira em absoluto se lembrar, ao rever – Opa, desculpa. Desculpa mesmo!

Fernanda riu bastante, não conseguia evitar. Ainda não tinha álcool suficiente no sangue para livrar-se do terrível fardo da consciência: ela permanecia ali, no canto de seu eu, como uma rainha testemunhando impotente um golpe de Estado. Seu tato acusou esbarrões em pelo menos três direções diferentes, mas o aviso chegou tarde demais para que qualquer providência a respeito fosse tomada.

Uma voz masculina, possivelmente Rétz, lhe disse qualquer coisa incompreensível – para a tirania do álcool, ao menos – mas passou rápido o bastante para que ela nem se incomodasse em virar.

- E você? – seguiu Rodrigo – Não vai na caipivodka, não?

Fernanda ri de novo. A pista cheia não lhe impedia os movimentos espalhafatosos; na verdade, de certa forma a incentivavam. A festa, um sucesso de público, chegava exatamente então a seu ponto mais alto, e as vozes e o barulho eram uma incitação irresistível ao estardalhaço.

- Tá maluco, menino?! Quer que eu pare na glicose hoje?

Ele esticou o pescoço do jeito que costumava fazer quando ia dizer alguma sacanagem no seu ouvido, mas voltou balançando no meio do caminho, deu uma disfarçada absolutamente fracassada e ensaiou alguns passos. Rodrigo era um péssimo dançarino. Não por deselegância, por timidez, mesmo. Até bêbado. Fazia muito que ela não o via em uma danceteria ou em qualquer coisa parecida com uma.

Reencontraram-se num bar da orla, já devia ter um ano – sim, mais ou menos isso, mesmo. O longo tempo de sumiço e as boas lembranças renderam-lhes algumas horas de uma conversa de intimidade estranhamente baixa, e a promessa de fazê-lo novamente em uma semana. Eram dias frustrantes, que precederam a reprovação por desistência dela no projeto final, e do abandono do curso de desenho industrial dele; mas muito pior que isso, era um momento em que todos os bons amigos de ambos ou mostravam-se não tão bons, ou pouco disponíveis – boa parte deles, devido a comprometimentos amorosos.

Viram-se, então, de novo e, como ela deveria esperar, ele ousou um pouco mais, aproximou-se durante a fala, fez um carinho em seu rosto. Mais ou menos no ponto em que ele pegou em sua mão, ela lhe respondia porque acreditava que se deixava voltar a vê-lo. O próprio Rodrigo lhe perguntara. Disse qualquer coisa previsível como “você não continuou pensando em mim nesse tempo, não sentiu minha falta?” e ela respondeu, muito sinceramente, que era claro que sentia, mas não tanto, sentia mais mesmo agora, porque se sentia – foi exatamente nesse ponto que ele pegou em sua mão, e a voz dela quase desapareceu – tão sozinha. E ele respondeu “eu também”, recostou-se sobre ela e a beijou; então pediram a conta, foram para a casa dele, e treparam como não faziam há muito tempo.

Continuaram curando mutuamente sua solidão assim, de quando em quando. Viam-se, narravam seu dia-a-dia um ao outro, bebiam (ou não), fodiam (ou não), iam embora para suas respectivas casas. Eram companheiros em seus excessos de saídas, álcool e noites mal-dormidas, companheiros ao narrar suas vidas diurnas um ao outro e constatar que tudo dava errado. Rodrigo deixou escapar a palavra namoro uma vez, enquanto Fernanda encostava-se em seu peito. “Namoro?”, ela se indagou. Bem, eles se viam com freqüência, e se beijavam e compartilhavam da intimidade um do outro.

Ele não a beijava agora na pista, no meio da festa de reencontro da escola, Fernanda tinha certeza, era porque também se perguntava a mesma coisa, também sentia que aquilo, embora parecesse um namoro por todos os critérios válidos, era como o prazer que se tem de comer um prato frio quando com muita fome, de um mijo após horas de contração.

- Vou pegar mais bebida! – gritou-lhe Rodrigo ao ouvido.
- Tá bom! – respondeu. – Eu vou sentar em algum canto. Me traz uma uva?
- Quê?!
- Uma uva!... Deixa pra lá.
- Trago! Se tiver!

Rodrigo rumou para a cozinha, e Fernanda voltou-se para o grande conjunto de cadeiras cheias do outro lado. Turmas grandes se avolumavam. A velha gangue dos nerds comparecera em peso e, somando-se amigos convidados, namoradas e afins, enchia 20 lugares do canto direito numa mesa volumosa. Letícia, Picles, Zé Ruela, e uns três desconhecidos sentavam-se em outra, companhia demais para seu gosto. Luciana e o irmão, pelo visto não se viam há muito, no fundo, ao centro; nada que ela gostaria de atrapalhar. Procurou por Paulinha e o namorado, mas aparentemente tinham sumido, como era costume nos momentos em que ela precisava da companhia de amigos, ainda que de um casal.

E no canto oposto estava Alessandro, seu antigo professor de História, que ela jamais imaginaria presente, sentado de costas para a parede, uma lata de cerveja na mão. Ele tentou, enquanto a fitava, o melhor que pôde, sorrir, mas sua expressão cabisbaixa acabou por alterar-se pouco.

Vendo o lugar vazio ao lado dele, foi para lá se sentar.

- Oi, Fernanda. – disse-lhe Alessandro.
- Oi, e aí. – sentou-se. – Fazendo o quê sozinho no meio desse povo todo?
- Estou montando uma pirâmide de latas de cerveja vazias.

Na mesa, havia seis latas vazias, quatro na base, duas na segunda fileira.

- Seu bêbado. – ela sorriu.
- Me ajuda aqui?

Ele lhe estendeu a lata em suas mãos, que tinha apenas uns poucos goles sobrando; ela despejou o conteúdo garganta abaixo e depositou o recipiente vazio no pano azul da mesa.

- Tá fria ainda, você bebe rápido. – comentou ela. – Essa já é da leva que o Patrick foi apanhar agora?
- O irmão da Luciana?
- Ele mesmo.
- Sabe, ele foi um grande amigo meu, tempos atrás. Eu vinha muito aqui.
- É, ele me contou. Disse que você sempre se escondia dele na lixeira entre o play e o segundo andar, bem encolhidinho.
- Lá dentro. – sorriu Alessandro, e aquilo parecia ser algo tão diferente, como se seu sorriso naquele momento alterasse mesmo alguma lei do comportamento humano.
- Ele disse também que esse play não mudou nadinha desde que vocês eram crianças.
- Mudou. Acho que tudo sempre muda, só eu continuo igual.
- Você acha mesmo isso?

Ele não respondeu; deu sumiço no próprio sorriso e voltou a fitar o mesmo ponto difuso da festa.

- O mundo não é imutável só em você, sabe, nem tão limitado. Olha só essa festa, o melhor exemplo prático. De quantos jeitos você acha que ela não podia ter acontecido? Quantas histórias diferentes essas pessoas aqui não trouxeram e poderiam ter trazido?

Alessandro nada ainda, fazia cara de incomodado com a bebedeira dela.

- A Paulinha hoje, tá namorando o Daniel, beleza, mas você viu como o Rétz passou por ela sem nem falar nada? Eles podiam muito bem tá namorando ainda. O Rétz também podia tá todo certinho, ou podia tá mais loucão ainda, ele quase fez teatro, sabia? Aliás, eu durante um tempo achei que ele fosse gay. Aí eu achei que ele gostava de Lê. Aí eles dois sumiram, e Luciana sumiu... ela continua muito patricinha, mas podia não ter continuado, podia ter endoidado, mudado totalmente. Podia tá discotecando agora. A Lê podia tá discotecando. Acho que ela gostava do Rodrigo, ela mesmo podia tá com o Rodrigo agora, e não.

Deteve-se assim que percebeu o que dizia. Alessandro, sem virar o rosto, respondeu-lhe:

- Fernanda, até eu consigo dizer o que você quer me perguntar.
- Não consegue, não!
- Sim.
- Você acha que entende tudo que aconteceu entre a gente só porque viu desde o começo, mas você não sabe de nada, você não sabe o que tá acontecendo, não sabe o que vai acontecer. Você acha que sabe o que vai acontecer, fica sempre tentando adivinhar, porque acha que só uma coisa pode acontecer, mas quer saber? Isso é babaquice sua! Pode acontecer uma caralhada de coisa. Amanhã o Rodrigo pode vir e me pedir em casamento, e pode ser que eu aceite, e pegue o emprego no Ministério da Cultura que a minha mãe vive enchendo o saco pra eu pegar. E tenha uma vida comum e feliz. Ou que eu dê um pé na bunda dele, e mande ele me largar, e nunca mais veja ele, pense nele, e diga pra ele que, se tem uma coisa que eu consegui perceber, é que ele não é o homem da minha vida, que a gente não tem como dar certo, isso é só uma enrolação.
- Não.
- Não o quê?

Nada, de novo. Alessandro mexeu levemente o braço esquerdo, mas desta vez Fernanda pôde sentir, na maneira como o fazia, inquietação.

- Você acha que eu não consigo fazer isso. E deve ter razão, porque eu não consigo fazer nada, eu não consigo fazer nada que eu queria da minha vida. Nem com o Rod nem com ninguém. E você tá errado quando diz que só você não muda, porque eu também não mudei, nem eu nem o Rod, eu. Não consigo largar isso, não consigo largar nada, não sei pra onde ir se largar.
- Você não veria nem que estivesse do seu lado.

A inquietação se refletia nele agora de maneira mais clara, e, mesmo com a percepção embotada, Fernanda sabia que ele queria se levantar – mas não o faria.

- Mas isso não vai durar pra sempre não, fessor. Um dia você também vai mudar. Pode dizer que é papo de bêbado. Mas um dia, assim do nada, eu vou conhecer e me apaixonar por uma outra pessoa, acho que alguém uns seis anos mais novo, assim, só pra eu morder bem a língua, e vou parar de usar esses suspensórios e vou fazer uma música diversificada, e vou ser contratada pra fazer a trilha sonora de um jogo japonês de criação de cachorros. Espaciais. E vou viajar pelo mundo e virar taoísta, e vou ajudar um bando de religiosos a lutar contra a tríade em Hong Kong. E vou aprender a ler o futuro no I Ching, e nem vou precisar estar bêbada! E você.

Alessandro virou-se para encará-la, pela primeira vez durante toda a conversa; ela continuou:

- Você vai acordar um dia com um bilhete na porta da sua casa dizendo que você não se lembra do que fez no dia anterior, e não vai se lembrar mesmo. E você vai conhecer um sujeito chamado Gaio com uns cachorros que diz que é Deus, e conhecer uma língua secreta que altera ondas elétricas. Aí vai ser perseguido por uma organização para-militar que implantou chips em sua cabeça, e vai se apaixonar de novo por uma moça que se chama Helena mas se chama Andréia, e ter que fazer um ritual de sacrifício a Hades pra impedir que E.T.s invadam a Terra, e se oferecer e dar um tiro na própria testa.

Olhou para ele e abriu um sorriso largo.

- E aí, gostou da minha previsão? Não vai dizer nada?

Nada.

- Diz alguma coisa, Alessandro. Você não vai falar mais nada, isso é tudo que você tinha pra me dizer? Alessandro!?