18.4.05

Os Oito Copos - Sexto

- Nossa, que música é essa? – riu Luciana, deixando-se cair mais um pouco na cadeira, enquanto ouvia os bipes ritmados do telefone celular da amiga.
- É o Jorge, ele que pôs. – respondeu Fernanda. – Não sei de onde é.
- Jorge?

Fernanda olhou rapidamente para o visor do aparelho, apertou um botão e pôs-se a guardá-lo de volta na bolsa.

- Ué? Não vai atender?
- Depois eu ligo pra ele.
- Ih, meu deus, já tá assim?
- Não, não, ele é um amor, mas.
- Mas?
- Muito bobinho, às vezes.
- Mais do que você?
- Ele é novinho.

Luciana abriu um sorriso e esticou os braços pra fora da manga larga da blusa rosada.

- Ora, ora, ora, ora!
- Ai, saco...
- Ai saco não, ai saco não! Quer dizer que eu esperei oito anos para ver dona Fernanda Dantas Nogueira se tornar a maior mordedora de língua da face da Terra?!?
- Lú!
- Lú não, minha filha, Lú, não!
- Olha.
- Quantos anos?
- Dezs...
- Não ouvi! Quantos?
- Dezessete, porra! Tá bom?!

Luciana cai na gargalhada.

- Ah, se eu soubesse disso na época que fiquei com o Beto! Ah, se eu soubesse!
- Lú, eu era novinha e idiota, pelamordedeus.
- E ele? É idiota?
- Não. Bobinho só.
- Sei.

Deu uma olhada na amiga de cima a baixo.

- Cê mudou, Fê.
- Não, você é que mudou. Eu tô igualzinha.
- E paquerando um moleque de 17?
- Então. Igualzinha.
- Mas eu não penso em você assim, com esse suspensório, isso não é a Fernanda que eu conheci. Eu lembro de você de cabelo comprido e arco cor-de-rosa.
- E eu lembro de você sem esse piercing no nariz. Nem esse sotaque de gringo com ovo na boca.
- Eu não peguei sotaque!
- “Ieu non peiguei sutáqui!”

Risos.

- Sua piranha.
- Vadia.
- Quer uma cerveja?
- Pode ser.
- Vou lá pegar.

Luciana levantou-se e rumou para a cozinha, e Fernanda se pegou varrendo o salão de festas e a parte visível do play com os olhos. Em frente à porta da cozinha Picles, sua namorada, cujo nome ela desconhecia (entrara muda e provavelmente sairia calada), Paulinha, a tal Lara, de quem ela mal se lembrava, e o Lucas “lata velha”, travavam uma conversa animada entrecortada por muitos risos; afastaram-se um pouco para deixar Lú passar, mas de resto seguiram como se nada tivesse acontecido. Lê terminava de organizar a lista de mp3 que tocariam ao longo da festa em seu laptop, e voltava a dar as mãos a Mateus, da velha turma de nerds da sala. Rétz dançava na pista com Rita, que na época da escola mal falava, e aparecera com o cabelo verde e um vestido rosa-choque, e um outro garoto novinho que devia ser calouro de alguém. Faziam aquilo para chamar a atenção, mesmo; nisso o Rétz não mudava.

Rodrigo tinha vindo com um primo, ao lado de quem observava tudo, de fora do salão. Passara a maior parte do tempo conversando com ele daquela maneira familiar na qual simplesmente não se consegue parar de ligar um assunto ao outro, e dificilmente permitir a entrada de um novo interlocutor; coisa de quem não se vê há tempos, mas descobre-se ainda cheio de particularidades em comum. Tinha o rosto limpo, branco de falta de sol, os cabelos bem curtinhos, e vestia uma camiseta branca lisa, assim. Não parecia nem muito que tinha saído de casa.

Rétz contara-lhe que Rodrigo criara um programa de geração de sabe-deus-o-quê operacional durante sua temporada nos EUA, que lhe valera uma fortuna. Aparentemente era estupidamente famoso no meio. Agora trabalhava em casa por vídeo-conferências, faxes e e-mails, com folga, resolvendo como investir o seu dinheiro, mas na verdade ninguém nem soube dizer se pretendia continuar por aqui, se estava de passagem – talvez ele mesmo não soubesse.

Rodrigo desviou o olhar do primo por um instante, e num movimento – ao menos aparentemente – desproposital, cruzou os olhos com os dela, que rapidamente jogou os seus rumo a um canto a princípio vazio do salão. A princípio.

Pois lá estava Alessandro, seu antigo professor de História, que ela jamais imaginaria estar presente, sentado de costas para a parede, olhando para ela, com o celular ligado e aceso em sua mão. Ele tentou, enquanto a fitava, o melhor que pôde, sorrir, mas sua expressão cabisbaixa acabou por alterar-se pouco.

Ela sorriu de volta, e, meio sem perceber, levantou-se e foi lá falar com ele.

- Oi, Fernanda.
- Olá, senhor Alessandro. – fez um pouco de tom de brincadeira. – Posso saber o que você está fazendo aqui?
- Estou montando uma pirâmide de latas de cerveja vazias.

Na mesa havia 5 latas vazias, 4 na base, uma iniciando a segunda parte.

- Nossa, você já sabe até quantas vai beber!
- Me ajuda aqui? – perguntou Alessandro.

Ele lhe estendeu a lata em suas mãos, que tinha apenas uns poucos goles sobrando; ela despejou o conteúdo garganta abaixo e depositou o recipiente vazio no pano azul da mesa.

- Na verdade – retomou, enxugando a boca com as costas da mão – o que eu queria saber era com quem você tava falando?

Como resposta, Alessandro apenas mostrou-lhe o visor do celular, onde se lia o conteúdo de um torpedo de cerca de um minuto e meio antes:

“Pisandro, seu mongol! Eu tô em sampa. Dê um beijo na boba da minha irmã por mim! – Patrick.”

- Patrick?! – ela arregalou os olhos, enquanto devolvia-lhe o celular. – Você conhece ele?
- O irmão da Luciana? Sabe, ele foi um grande amigo meu, tempos atrás. Eu vinha muito aqui.
- Bem, a Lú foi só pegar uma cerva pra gente, mas deve tá muito cheio lá –
- Lá dentro.
- É.

Fernanda brincou um pouco com a lata vazia.

- Eu nem sabia que a Lú tava morando na Inglaterra, ainda mais que o Patrick tinha mudado.
- Mudou. Acho que tudo sempre muda, só eu continuo igual.
- Acho que nem tudo não, nem tudo.

Lançou um olhar para fora do salão, onde Rodrigo conversava com seu primo.

- Você não acha que o Rod. Eu sei que ele tá diferente. Mas o jeito como ele de vez em quando me olha ainda é o mesmo daquela primeira festa aqui. É, né, como é que –
- Fernanda, até eu consigo dizer o que você quer me perguntar.
- Então, não parece?
- Sim.
- Deve ser muita burrice achar que a gente ainda podia dar certo. Depois de tanto tempo. A gente tinha uma coisa tão boa e eu. Eu não sabia como ia ser a vida sem encontrar ele e jogar o jogo do dedão, ele não comendo feijão, deixando comida no prato. Caralho, eu odiava isso, eu odeio gente que come porcaria. E ele reclamando que eu demorava nos shows? Você sabe que ele fazia isso? Reclamava da gente começar atrasado. Todo mundo começa show atrasado. Eu nem sei se tocaria se não fosse por ele, eu fiz a minha segunda música pra ele. Acho que ele nem sabe.

Suspiro.

- Eu sou uma idiota.
- Não.
- Eu. Eu falaria com ele agora, eu quero mesmo falar, mas não sei o que, nem sei como começar. Tô com essa sensação de que a nossa história ainda não terminou, sabe? Tô tentando entender, fico lembrando das coisas. Mas imagina, eu nem ia saber como puxar assunto. Se eu tivesse uma idéia...
- Você não veria nem que estivesse do seu lado.
- Fê! – a voz de Luciana chegou baixa da outra ponta do salão; ela trazia não 2, mas 3 latas.

Fernanda trocou com Alessandro olhares de compreensão súbita, e dirigiu-se na direção da amiga para interceptá-la. Tomou-lhe as duas latas da mão direita e, seguindo rumo à porta, puxou-a com a outra.

- Fê?! Que é isso?

Soltou-lhe a mão.

- Olha, desculpa, isso é uma coisa que eu tenho que fazer. Cê é minha amiga desda 3ª série, me ajuda?
- Como assim?

Fernanda voltou a andar, e Luciana compreendeu para onde estava sendo levada.

- Você quer falar com o Rod? Fê –
- É burrice, né? Eu sei que é burrice, mas é só que. A gente se fode tanto na vida, eu acho que pode ser que eu não goste de falar com ele de novo, mas nem ligo mais, a gente depois de um tempo –
- Fê!
- Quê?
- Era só pedir que eu ia. – sorriu. – Mas essa cerveja era pro Alessandro.
- Ah, ele vai entender.

Foram. Rodrigo demorou a perceber que se aproximavam; ao ser avisado pelo primo e virar-se, quase deu um salto pra trás.

- Oi Rod.
- Oi, Fêe – ele alongou o ê, claramente se evadindo da intimidade do apelido –eernanda. Oi, Luciana.

Mostrou a ele a lata.

- Quer uma cerveja?