19.6.07

Heitor - I

Poder-se-ia dizer muito dos motivos que têm me mantido mais e mais afastado deste blog, e que também são muitos. O mais certo seria culpar o trabalho - só que ultimamente ando achando difícil culpar o trabalho por qualquer coisa... é um palavreado que nos habituamos a usar para nos queixarmos da atividade tediosa que trocamos por dinheiro e nos impede de realizar todas as outras coisas, estas sim, interessantes. E se temos um minuto de folga, corremos para o blog. Ou eu, no caso, aproveitava palestras, seminários de alunos e provas das quais tinha de "tomar conta" para rascunhar tolices em folhas rasgadas de caderno, que eu pouco revisava ao passar correndo para o blog. Também uma fuga de um destino cruel, de uma rotina medíocre e enfadonha...

As coisas mudam, mudaram. Possivelmente porque neste exato momento tenho retornado à pesquisa e me distanciado um pouco das aulas, e já vinha pegando menos delas antes - é uma coisa terrível que se obrigue um pesquisador a professorar, penso; a bem dizer, acho que nunca fui muito bom nesta última. Não desgosto, mas... Enfim, tenho, diabos, sempre tive, um trabalho estimulante, interessante, intrigante, e que julgo importante. A rigor, gosto bastante do que faço e sou até conhecido por isto, como costumo ser até nos piores momentos da vida. Que por um período eu tenha fugido disto, esta é a exceção; esta é a estranheza que não sei explicar. Mas tentarei fazê-lo, com esta historinha.

Penso não ser do conhecimento de todos que tenho um "projeto paralelo" a meus escritos neste blog; uma ficção em primeira pessoa de intenções pouco altruístas que tenho guardada em um .doc bem escondido e uma ou outra folha de caderno - lembrete aos que me acusem de escrever por sucesso: meus maiores esforços ficam reservados a mim mesmo.

A idéia nasceu do mesmo período de frustração que gerou este blog, bem como a explosão de posts que o inaugurou, e tinha algo daquela noção batida de sermos algozes de nós mesmos e de como, no âmago de cada ser humano, podemos encontrar as linhas gerais de seu próprio descompasso, a contradição capaz de levá-lo à desgraça. E como a princípio pensava em incorporar esta idéia ao blog, ela teve seus espasmos de vida aqui; em especial diálogos meus em alguns posts e, claro, na criação do usuário-administrador, encarregado da maioria dos posts, das respostas aos comentários...

A idéia? Coisas que nascem da frustração: autocomiseração, autojustificação, e uma pitada de vingancinha mesquinha. Eu pensei, fiz tudo que pude para tentar levar a vida que queria; fiz tudo que pude e sinto-me absolutamente infeliz e insatisfeito - e medíocre. Se aconteceu comigo, deve acontecer com mais alguém, e se não aconteceu, farei com que aconteça e demonstrarei como é possível e compreensível. Criarei esta criaturinha, com apenas o mínimo de problemas suficiente para torná-la crível, mais que compensados por um sem número de privilégios e mimos, semelhante à minha ao ponto que ninguém possa deixar de perceber a semelhança...

... e então a esmagarei e partirei em pedacinhos. Farei com que o mundo destrua seus sonhos, frustre seus planos e com que ele passe o resto de sua vida fictícia lamentando-se sozinho e se queixando.

Parecia bom. Se não boa literatura, bom o bastante para aquietar meu coração queixoso, soltando suas raivas em palavras e justificando minha infelicidade por um experimento controlado. Fui ao trabalho.

Comecei do começo. A semelhança principiou pelo local da trama, Rio de Janeiro, Brasil, e seguiu com um protagonista do mesmo estrato social, crescido (ainda que não nascido) na mesma região (zona sul) e meio, com diversos traços de personalidade em comum: o tipo pouco atlético, leitor voraz com uma queda pelos clássicos, mais cheio de si do que talentoso, dotado do mesmo tipo de romantismo alienante e obcecado que é receita certa para a solidão; e, mais importante, com a mesma tendência à frustração e à depressão. Já as diferenças, escolhi-as cheio de segundas intenções: menos idade (para acompanhar por inteiro toda a trajetória decrescente), um temperamento mais instável (para torná-lo indisciplinado e levá-lo a cometer deslizes injustificáveis), uma orientação profissional absolutamente incondizente com sua ambição pessoal (direito - alguém já parou pra contar quantos escritores amadores, pintores, atores, desenhistas, etc. tornam-se advogados frustrados? Seria um longo tempo parado).

Um nome. Voltei às inspirações homéricas, mas nada de coadjuvantes com nomes repetidos e mortes rápidas, como acabou sendo comigo: já que podia escolher, então escolheria um dos grandes. Pensei nos gregos primeiro mais por reflexo: Agamenon tem um final trágico, mas é um nome horrível; por Odisseu, ou Ulisses, nunca nutri muita simpatia, e como se não bastasse ele é um dos poucos para quem tudo, ao final, dava certo; Diomedes até era intessante, por toda sua querela com Afrodite, especialmente para quem queria um personagem com desventuras afetivas, mas de alguma forma não parecia o bastante; já Ajax simplesmente não parecia o nome de alguém com a personalidade que eu queria, embora haja inúmeros elementos interessante em sua tragédia: a inabilidade de conquistar para si o que julgava merecer, o equipamento de um vencedor - a armadura de Aquiles -, que leva-o a usar o que já merecidamente conquistara de um derrotado para matar-se - a espada de Heitor.

Heitor... Sim, eu estivera olhando para o lado errado do campo de batalha. Se quero um protagonista sofredor, um derrotado, porque o procuro entre os vencedores? E se vou escolher o nome de um dos troianos, então que seja mesmo ele, e não o sortudo Enéias, que escapa com vida e torna-se líder do que resta de seu povo, ou mesmo um menos lembrado como Glauco, morto por Ajax - e deus me livre de Páris, o mulherengo irresponsável. Muito mais interessante é o responsável, ponderado e humilde Heitor, que morre pelas besteiras de seu irmão; o talentoso e justo príncipe de um reino próspero que não queria nada mais do que aproveitar a vida ao lado de sua mulher e filho, mas está fadada sua cidade a cair, sua mulher a ser tomada por outro, seu filho atirado para a morte, e ele mesmo a ser cruelmente morto pelo orgulhoso Aquiles, de tantas formas seu oposto.

Parecia bom.