31.3.05

Condicionamento

É impressionante como o ser humano é uma coisa falha.

Hoje deixei a chave da minha sala em casa e vim com a chave dos fundos de casa no bolso. Não sou um sujeito atrapalhado ou esquecido - ao menos não com chaves; toda minha vida, fiz isso uma vez. Contando com essa de hoje.

Questão de condicionamento, como dirigir o carro, escrever ou falar. O corpo vai se acostumando e você para de pensar e só age intuitivamente - é uma coisa tão eficaz que existem correntes filosóficas inteiras baseadas nisso; "união da mente e do corpo", "quando se deixa de pensar em um gesto, alcançou-se a perfeição do ato". O problema com a prática: o hábito desleal de matar a teoria. Troca-se um par de chaves e um postulado-chave do zen-budismo vai pro caralho, o esquecer volta a ser só esquecer e nada de perfeição, o confie em seus instintos, Luke, modificado para confie em seus instintos, mas com moderação, Luke. Na dúvida, mande a mira automática te dar um toque.

Ou enfim, talvez a perfeição até exista, só não sei como ter certeza de alcançá-la. Daqui de minha limitada visão de mortal - particularmente a do mortal trancado do lado de fora de sua sala de trabalho, mais particularmente ainda do mortal também sem seus livros - cada gesto, por mais condicionado, treinado e preciso, vai ser sempre como um lance de moeda a la david hume: hoje cara, amanhã... vai saber. Pelo menos minha vida não costuma estar frequentemente sob alto risco.

Lembra-me aquele caubói da piada. Você sabe, atira, assopra, atira, assopra, atira, assopra, assopra...

19.3.05

Shakuhachi

Katsuro afastou o par de folhas secas da face, com o maior esforço que já fizera para mover algo tão leve. Era um gesto absolutamente inútil, claro. Podia ouvir o farfalhar de dúzias e dúzias de outras folhas exatamente iguais a seu redor, sentir o vento soprando em seu rosto, pacientemente desfazendo o nó em seus cabelos, e tinha a impressão de que breve seu corpo inteiro estaria coberto por elas.

O sangue em sua mão esquerda já tinha gelado. E Inoue ainda estava lá, a seu lado, talvez sentado.

- Hideaki-san? - indagou.
- Sim. - a voz veio de sua direita, não muito acima do chão. Sentado, com certeza.
- Porque você permanece aqui?

A melodia suave do shakuhachi foi sua única resposta.

Katsuro buscou apoio ao seu redor, lembrando-se de que havia uma pedra não muito distante - provavelmente o mesmo local onde agora Inoue sentava-se. Deixou que a música e a lembrança o guiassem à superfície sólida da rocha, que, pensava, se não lhe parecia tão fria, era apenas porque o calor já abandonava seu corpo.

- Hidea - um pigarro ensanguentado o interrompeu momentaneamente - Hideaki-san.

Nada.

- Hideaki-san. Como você consegue tocar isso?

A música parou, não subitamente, mas porque chegava já a seu final.

- Você não é monge. Nenhum ensinaria a você.
- Palavras duras. - Inoue, afinal, respondeu.
- Nenhum samurai ensinaria você. Nenhum ensinou. A sua postura. Não tem nenhum estilo. Você não tem nenhuma conduta, não segue, nada. Não fez uma saudação.
- Poupe seu fôlego e medite, Morita.
- Não. Não. Você vai me dizer. Como consegue, como pode.
- Como pode o quê, Katsuro-kun?
- Hideaki-san. Porque. Por que você permanece aqui?
- Poupe seus últimos momentos do delírio, Katsuro-kun. Você não merece isso.

Não pôde segurar o riso.

- Mereço? Não mereço.

As palavras não lhe acompanhavam o raciocínio, tinham o peso multiplicado pela dor. Katsuro queria dizer-lhe que, se merecer tivesse algo a ver com aquilo, era Inoue quem estaria deitado no chão naquele momento, morto e devidamente velado, sem sofrimento adicional. Katsuro não reservaria para ninguém aquilo pelo que passava agora. Ele era um guerreiro honrado, e tinha aprendido a respeitar seus inimigos. Ah, sim. Tinha aprendido muito.

Dedicado a vida inteira, inteira, toda ela, ao Bushido. Treinava desde os 7 anos de idade. Estivera com os melhores mestres, enfrentara as mais duras provações a que eles o puseram. Uma vez, a pedido de Kagemura sensei, passara dois meses na floresta, sozinho e desarmado. Matou um tigre com uma katana de ossos que poliu sozinho. Subiu um monte de 50 metros com a mão esquerda...

- ... amarrada. Depois de um dia inteiro sem comida e bebida. Você sabe o que é isso, Hideaki-san? Sabe qual é a sensação?
- Não.

Começou a procurar por oponentes valorosos, juntamente com Matsumoto. Foi logo depois de Sekigahara. Já tinham estado em muitas guerras, e em nenhuma encontraram oponentes realmente valiosos. Separaram-se. Eram 1 ano e 7 meses depois, já tendo Katsuro derrotado ao menos uma dúzia de valiosos duelistas em combate, alguns a mando de seu Tono, quando recebeu a notícia de que Matsumoto morrera pela espada de um andarilho.

- Hideaki-san. Você não é ronin. Não é?

Inoue Hideaki. Filho de um criado dos Morita. Katsuro lembrava-se bem dele, com os cabelos longos e muito lisos desde pequeno, sempre sério. Brincara com ele, apesar de ser um tanto frustrante, já que ele não gostava de brincar de samurai. Lembrava-se de vê-lo, de dentro do dojo, Hideaki sempre deitado em cima de uma árvore, fitando o horizonte enquanto ele treinava 6, 7 horas por dia. Um dia, quando ambos tinham pouco mais de doze anos, Hideaki sumiu; não tinha ao menos um sobrenome nessa época. Podia-se apenas especular como ganhara um.

Katsuro o rastreou, em parte porque queria mesmo vingar-se pelo amigo morto, mas também por curiosidade: afinal, que tipo de homem teria se tornado um vagabundo como Hideaki? Teria Matsumoto se descuidado? Teria ficado mais fraco com os anos - enquanto Katsuro se fortalecia? Na verdade, Matsumoto sempre fora mais fraco que ele.

Morrera com a perna cortada fora pela espada de Inoue, numa briga em uma estalagem. O dono disse a Katsuro onde encontrar o assassino e como identificá-lo, mas negou saber sua origem, estilo ou motivos. Contou que brigaram porque Matsumoto recusara-se a pedir desculpas após derrubar-lhe o saquê, mas não disse como se deu o duelo, nem porque fora permitido que seu amigo sangrasse pela perna até a morte. Agora já podia imaginar a cena.

Marcou com Inoue na estrada à beira da vila, e ele surgiu acompanhado da melodia do shakuhachi, em suas vestes negras e vermelhas, alvo, magro, o mesmo rosto sério. A aparência de um frouxo, mas Katsuro não subestimaria nunca um oponente. Trocaram poucas palavras, e Hideaki nada lhe respondeu ao ouvir sua intenção de matá-lo. Tampouco sacou a espada.

- Eu não vi.
- Eu sei.
- Eu nem ao menos vi. Onze anos de Iaijutsu e eu nem vi.

O cabelo solto de Inoue subindo-lhe por sobre o rosto fora a última coisa a passar por seus olhos, antes que a visão desaparecesse num borro escuro e levemente avermelhado. A dor alcançou-lhe apenas no segundo golpe, que não trespassou-lhe o ombro como era de se esperar, mas apenas cortou-lhe na altura do peito.

Ganmen Ate. Rápido demais. Saído sem nenhuma postura, um movimento até deselegante. Inoue segurava a bainha como quem carregava um graveto. Enquanto caía no chão, já sem condições de lutar, e compreendia que seus olhos haviam sido cortados por um primeiro ataque que ele não fora capaz de perceber, Katsuro entendeu também o quão melhor seu oponente era. Em uma luta onde as diferenças são menores, um descuido pode levar à vitória; mas no seu caso, somente um milagre poderia ter decidido em seu favor. Inoue tirara-lhe os olhos sem nenhum esforço. Deixara-o lá para sangrar até a morte porque quis, podia muito bem tê-lo matado antes.

O filho do criado.

- Não é justo. A minha vida inteira. Como pode você. Tocar shakuhashi? Rápido demais.

Hideaki parou de tocar, e declamou:

"As folhas caem sempre no outono
O homem não pode ver:
O tigre é que mata sua presa"

Hai-kai?

- Quem... onde?
- Eu. Agora.
- Hideaki-san. Eu. Mate-me.
- Já fiz isso.
- Não. Não! Mate-me

A tosse de sangue o interrompeu.

- Como você -
- Achei no chão de um templo abandonado. Aprendi sozinho.
- O quê? O shakuhachi? A espada?

Nada.

- Hideaki-san.

O melodia voltou a tocar.

- Porque você permanece aqui?

14.3.05

Apoga^Lênizô, Héktor...

Já ouvi muito que a quantidade de tempo que se aproveita é inversamente proporcional à quantidade de tempo de que se dispõe. Longe de mim querer discutir a veracidade absoluta deste paradoxal axioma - ou suas terríveis implicações sobre a crescente expectativa de vida da raça humana - apenas observo que por diversas vezes ele simplesmente funciona. Tenho estado terrivelmente ocupado na última semana; mas é em momentos como este que a necessidade da escrita torna-se irresistível.

Um aluno, um bom aluno, chegou-se pra mim outro dia lamentando o mal resultado de uma prova, que se deveu a seu estado altamente tenso. Então perguntou-me como eu conseguia ficar calmo, como eu tinha conseguido toda aquela serenidade ao apresentar minha tese de doutorado (ele estivera assistindo na ocasião), e eu respondi sofrendo de um desses ímpetos de sinceridade: não consegui. Ele não entendendo, expliquei, não estava calmo, não estava sereno, estava explodindo por dentro, fazendo o melhor que podia para canalizar a tensão na forma de entusiasmo, ou uma oratória mais aguçada, ou o que quer que fosse.

Escolhemos muita coisa na vida, mas ninguém escolhe ficar calmo. Não é uma escolha, e sim consequência do que se escolheu valorizar; como o medo é sempre aquele de se perder algo querido (eis aí a sabedoria popular, quem tem cú tem medo - quem ousa dizer que não valoriza o seu?). Em um momento importante, fica-se tenso, se algo te emociona, você vai ficar emocionado, se algo te enraivece, você vai ter raiva; as escolhas que o levarão a estas situações, e o que você faz com as emoções depois, são por sua conta. Mas o controle absoluto de si mesmo? estou pra ver ainda.

Foi coisa assim que eu lhe disse. E percebi então que tinha mudado de opinião acerca de algo - o que torna-se, aliás, incomodamente mais frequente desde o XI cântico.

Mas pelo menos agora já consegui me recuperar o bastante para acertar a pontuação.

9.3.05

Os Manuscritos II

Apresento agora mais alguns trechos traduzidos dos "Manuscritos da Lagoa Rodrigo de Freitas", com algumas revelações surpreendentes sobre os rumos do cosmos e da vida na Terra.

"- Então é a 5ª sub-espécie de réptil gigante que Eu faço esta rodada. É bônus multiplicador, então soma aí... quanto é 37 vezes 182?
- 6734.
- Isso, muito bom.
- Cabou?
- Espera, deixa eu ver, deixa eu ver. Hmmm não, acho que não tem mais nada. Cabei, sua vez.
- Ótimo. Vou mover meu meteoro 3 casas e colidir ele no planeta.
- ... Vai o quê, meu Filho?
- Mover meu meteoro 3 casas e colidir ele no -
- Não, não, não! Meteoros não movem mais 3 casas. Isso era nas rodadas de 250 milhões de anos!
- E nas de meio bilhão e um bilhão também.
- Sim! Mas, quer dizer, mas aí era diferente.
- É? Como?
- Bem, eles se moviam 3 casas com no mínimo 250 milhões de anos de lapso temporal, quer dizer, com certeza Você entende que, agora, com rodadas de 5 milhõezinhos só -
- Olha só. O que eu entendo é o seguinte: movimento é por rodada. O que regula o movimento é a rodada, você disse isso quando moveu sua primeira galáxia!
- Mas de 250 pra 5, é exceção!
- Ah, é exceção? Como que é exceção, tá escrito em algum lugar, tem a regra escrita?
- Tem! Tem!
- Ah, é? Cadê? Mostra, então!
- Não! Não, que é isso, Eu é.
- Hã?
- Eu vou demorar muito pra buscar.
- Eu espero.
- Não, que, que, Você. Assim... vai ter muito trabalho!
- Num me incomodo, não.
- Mas só por uma regrinha assim, não, não precisa, que bobagem.
- Escuta aqui, meu Irmão. Assim não dá pra continuar, não. Você diz que tem uma porra duma exceção de regra escrita, eu acredito, mas se você não me mostrar nada, aí eu vou começar a achar que Você tá inventando regra. E se você inventou essa, pode ter inventado tudo. E se -
- Na verdade, acabo de me lembrar.
- Hm?
- Essa exceção é pra cometas em rodadas abaixo de 100 milhões de anos só.
- Ah. Tô sabendo.
- Como era o cálculo de dano por área?
- Sei lá... Chuta uns 7 milhões e meio por km por alto aí, não faz diferença, os bicho vão tudo morrer, mesmo."