26.7.07

Heitor - II

Nome escolhido, fiz um mínimo para prosseguir a partir de 2004. Tendo sido bom aluno na escola, pensei que teria ingressado cedo na universidade, e estaria portanto formado; como porém o curso a bem dizer muito pouco lhe apetecia, nele em nada destacou-se, nisso sofrendo criador e criatura do mesmo mal: saberem estudar apenas e sempre por prazer, mesmo quando com disciplina. Mas nisto não quis Heitor exatamente como eu, então cortei-lhe um dedinho de metodismo, pensando que isto em muito o desfavoreceria, ao que imediatamente acrescentei conseqüência - era formado, sim, bacharel em Direito, também, mas não advogado, não ainda. Havia uma prova para ingressar na OAB, disto eu sabia, e uma cuja taxa de reprovação era alta; então, reprovei-o. Duas vezes. Já tinha então parte da minha resposta para "o que tem feito Heitor desde a formatura?".

Devia haver mais quanto a isto, decidi; mais por trás deste conflito com o Direito. Lembrei de meu pai, que tanto me queria promotor como ele, ou mesmo juiz ou algo do gênero, e tentei pensar no que teria sido de mim se tentasse seguir um caminho criado por outros; achei, por outro lado, porém, que a semelhança seria exagerada. Ao invés do pai promotor, fiz do avô, juiz; já o pai, havia decidido por sua morte prematura, e isto apenas ressaltou tal convicção. A vida estava sendo boa demais para Heitor, boa o bastante para começar a parecer pouco convincente, algo que a tragédia simples e repentina ajudaria a retificar; morre o pai aos seus 17, pouco antes do vestibular, daí em diante seria uma sutil ladeira abaixo. A família não faz pressão, mas ele é ingênuo o bastante para crer que gostará de algo que não lhe parece muito divertido, ou, mais importante, que isto pouco importa, já que está destinado a ser um grande escritor, independente da faculdade que curse.

Mas nada queria com este Heitor sonhador e tolo, e sim com sua versão já levemente frustrada. E ao fim dos 5 anos de faculdade, 4 deles como estagiário, 3 destes com o avô, pensei tê-lo deixado mais ou menos no ponto. Ele detesta o que faz a maior parte do seu dia, detesta as pessoas com quem lida, sejam elas ou não da família, detesta de maneira geral o mundo que o rodeia. Não vê propósito ou motivo para fazer qualquer coisa que seja, portanto gasta seu tempo com besteiras em frente ao computador, entre jogos, blogs, filmes.

É claro, o mais importante não era nada disto, e sim que Heitor fosse só, muito só. Não obviamente só: com família acolhedora, amigos muito próximos... e só. É lugar-comum dizer que a solidão é tamanha subjetividade, pode-se estar "sozinho numa multidão" e blá blá blá, mas permita-me acrescentar meu quinhão reciclado de filosofia barata a esta especulação. Diz-se que algo está perdido quando não está em seu lugar, logo só pode perder-se se houver lugar em que ele supostamente deva estar; que coisa, e qual o lugar dela, são campos a ser preenchidos de diversas formas. Para a solidão vale o mesmo, só que um pouco trocado ou mais específico: como se uma pessoa ou tipo de pessoa estivesse perdido de você, e você fosse o lugar que ela devesse achar, mas não acha.

Os solitários são todos uns egoístas. Especialmente os introvertidos - estes não valem um tostão. Também já foi dito que os introvertidos têm o jeito mais egocêntrico de chamar a atenção, isto é, simplesmente indo para um canto e acreditando serem tão bons e especiais que apenas isto baste; mas novamente um acréscimo: enquanto tentar a todo custo chamar a atenção não é sinal de atitude e, sim, de insegurança (como o clássico do moleque brigão que é maltratado em casa), a maneira solitária de chamar atenção caracteriza pessoas vigorosa, absoluta e estupidamente cheias de si.

Se estás aí a pensar que falo de mim, então minha brincadeira já está dando resultados. Ora, direi novamente, é possível não falar de si? Usar o português não é falar de si? Falar sobre o mundo que você conhece, e não se pode falar de outro, não é falar de si? Enfim. Mas estou falando de Heitor, e pense lá o que quiser sobre o que isto significa, criei-o de tal forma que viesse a se sentir só, não porque o fosse ou porque não recebesse atenção alguma, e sim porque não o era da forma que julgava merecer, das pessoas ou do tipo de pessoas de quem queria chamar atenção, que no caso era um só tipo, e um tipo de mulher.

Orgulho-me um pouco disto, sabem? Acho que a coisa toda funcionou mesmo porque, a partir do momento em que usei o nome, decidi usar um pouco como base também. Não é a característica marcante de Heitor, filho de Príamo, amar profundamente sua mulher (e ser por ela amado), ao contrário dos gregos que, como Aquiles, e aí novamente são opostos perfeitos, buscavam para o amor outros homens, para o prazer descomprometido, escravas, e deixavam às esposas o trabalho do parto legítimo? Meu Heitor seria assim, sem uma Andrômaca - mas achando que merecia uma.

Fui até generoso: dei-lhe um namoro aos 16 anos de idade e seu quinhão de casinhos; mas dei também ambição e pretensão muito maiores, e ao fim de 2004, ao começar minha história, o encontrei absolutamente frustrado e desesperançoso. A maldição parecia redondinha, perfeita: querer sempre alguém que se sabe não corresponder é a maneira mais segura de permanecer sozinho, permanecer sozinho é a maneira mais segura de não se decepcionar, não se decepcionar é a melhor maneira de continuar se achando o último copo d'água do deserto. Quase como o coiote correndo atrás do pápa-léguas, que só pode mesmo querer passar fome.