27.7.07

Heitor - III

Agora penso que foi logo nesta altura que alguma coisa começou a dar errado com meu plano.

Tinha meu narrador-protagonista prontinho, mas achei meus primeiros textos com eles fracos e tediosos. Cheguei à conclusão de que a falta de conflito o tornara enfadonho - o que era ótimo, já que parte do objetivo - e de que uma boa estória precisa de conflito; no caso, uma estória de fracasso e sofrimento precisaria de conflitos para serem perdidos. Dizendo de outra forma, não bastava que Heitor começasse já derrotado sem nunca tentar, era preciso que ele tentasse e fracassasse, não de qualquer jeito, mas absolutamente, que tentasse com o mais perfeito otimismo e falhasse tragicamente - idéia que era, de partida, totalmente contrária à idéia inicial, o fracasso do jamais tentado: o fracasso que me justificasse.

Mas é o que dizem dos personagens, que lá pelas tantas parecem ganhar vida e tomar as rédeas da própria estória, quase como se nos puxassem a caneta pelo papel, os dedos pelo teclado. Antes que me desse conta, pus Heitor no caminho da tentativa: após 2 reprovações, toca a fazer prova para a OAB de novo; após anos exercendo uma profissão sem gosto, dei-lhe esperança com um ligeiro gosto pela pesquisa acadêmica; após anos de solidão auto-imposta, fi-lo deixar de frescura e correr atrás de mulher. Diabos, dei-lhe até uma atividade esportiva!

Ah, sim, também gosto desta parte, ou gostava: Heitor, de Tróia, não era um guerreiro? Decidi que meu falso cabeça-fria teria uma permanente atração pelas artes marciais que, longe de torná-lo um atleta, apenas o frustrariam mais um grande bocado. Fi-lo pipocar de uma a outra ao longo da vida - judô, taekwondo, karatê - e então desistir. Mas, como a idéia agora era tentar de novo, tentei encontrar uma nova brincadeira para ele, o que aconteceu quando assisti a um a demonstração de kendô em um seminário (ruim) sobre cultura e religião nipônica em São Paulo.

Kendô, se você não sabe, significa o "caminho da espada", que é o jeito firulento de se dizer "esgrima" no Japão, e é aquele esporte em que sujeitos de saiote vestem uma armadura feia, ficam gritando feito idiotas e batendo varetas de bambu nas cabeças uns dos outros. E "caminho" porque teoricamente aquilo não é nem uma luta nem um esporte, e sim uma "filosofia" praticada no dia-a-dia; ou seja, é a tentativa de metaforizar os gestos da luta para a vida, o que acaba resultando na moral "bata primeiro, pense depois" e numa série de postulados estilo mestre Yoda que mais parecem saídos de "Quem roubou o meu queijo?". Mas não me entenda mal, se você visse a apresentação ia sentir como se tivesse presenciado uma cena de filme de samurai ao vivo e querer entrar na academia no dia seguinte de manhã - bom, ao menos eu e meu personagem nos sentimos assim, logo, matriculei-o.

Dei uma outra olhada em meu personagem. Fizera-o tentar novamente, e lá estava ele: cheio de novos calos mas sem saiote ou armadura; ainda preso ao escritório todos os dias; apesar do cursinho, novamente reprovado na OAB; fora da seleção do mestrado, que julgara poder ser uma alternativa profissional; e ainda só. Estava orgulhoso de minha criação, mas não satisfeito - principalmente porque, sempre que relia seus (meus?) textos, sentia nele agora um otimismo que me era estranho.

Disse a mim mesmo que não iria lhe dar mais chances, e sim prepará-lo para uma queda maior, mas olhando em retrospecto penso que ele e sua estória é que já me fugiam ao controle. Achei que ele devia ter a chance de tentar outra opção profissional, então deixei-o passar em uma outra seletiva de mestrado (o que deu uma boa estória em si); que não ia mesmo advogar, portanto que pegasse a carteira, resultando num recurso à prova, substancial aumento de nota e aprovação; e até que lutasse de saiote e armadura - ao que respondi com uma conjuntivite poderosa, pois doenças nos olhos são um grande medo pessoal meu.

Mas quando ele arrumou algo próximo de uma namorada percebi que estava indo longe demais e decidi tomar controle da situação: dei-lhe um pé na bunda, uma enxurrada de trabalhos e críticas, e um avô hospitalizado. Por um tempo deu certo, e ele pareceu mais normal...

Mas a essa altura, quem não estava mais normal era eu mesmo.