9.11.05

Obra de Seu Tempo

Sabe, pode não ser do seu conhecimento, mas sou, ou fui, ou tendo a ser, um sujeito tremendamente preconceituoso com relação a mídias diversas. Não sou fã de cinema, escultura, fotografia, pintura; absorvo, mas não sou fã. Teatro, música, escrita, depende. Tive uma fase de muita leitura de revistas em quadrinhos, que ainda assim sempre achei bobos, e contra os quais tive um acesso de fúria um pouco mais velho, rapidamente me livrando dos números antigos de Homem-Aranha.

Provavelmente por isso demorei tanto a por as mãos em Sandman. Também pode não ser de seu conhecimento, mas só fui por as mãos num TPB de Preludes & Nocturnes, importado mesmo, em 2000, e não foi ele que me fez mudar de opinião sobre HQs, embora eu tenha visto alguns trechos muito interessantes, especialmente o epílogo, "Sound of Her Wings", que tinha trechos daquele belíssimo poema egípcio que jamais imaginei que veria numa revistinha. Mas fiquei curioso, era bom, e diziam que era tão maravilhosamente maravilhoso; dito e feito, este ano finalmente tive acesso à série toda. Lê-la gerou duas categorias de opinião.

A primeira categoria, logicamente, é de que é muito, muito bom. É excelente, maravilhoso, sensacional, tudo isso, e o é em vários níveis. É maravilhoso pelo uso único de sua mídia (os variados estilos de desenho, posicionamento dos quadros, os balões, fontes...); pelo seu estilo de diálogo e narrativa, mesclando o fantástico ao mundano; pela sua mitologia e pela sua mescla de mitologias... Mas o mais impressionante mesmo, o absolutamente único, o que o distingue de qualquer outra coisa já feita no gênero, é sua coerência. Neil Gaiman não deixa um único ponto sem nó, e consegue lidar com um número absurdo de tramas e subtramas que são, quase inexplicavelmente, ao mesmo tempo um todo totalmente coerente, sempre variações do mesmo tema. Não há uma única estória, um único dos inúmeros contos soltos, que esteja lá à toa. E é maravilhoso perder-se nas inúmeras "referências a si mesmo" da série, ou mesmo nas referências a outras coisas, e tentar buscar, em todos os momentos e pistas veladas deixadas ao longo dos 75 números, a solução do enigma de Morpheus, que, em última instância, não tem nenhuma explicação clara: por que ele toma sua decisão? (e, conseqüentemente, porque o fazem, com suas respectivas decisões, Destruição, Hob Gadling, Shakespeare, Lúcifer...).

Perceber tudo isto me levou à segunda categoria de opiniões: Sandman não é só muito bom. Ele é um marco de sua época. Posso estar equivocado por mil motivos, mas a princípio, escutem o que estou dizendo: daqui a muitos anos, esta série será lembrada como uma das maiores e mais típicas manifestações de seu tempo. Por que exatamente digo isto?

Pode ser mania de historiador, mas comecei a pensar isto quando reparei que a data em que Sonho fica aprisionado praticamente coincide com o "breve século XX" de Hobsbawn, antecedendo-o por um ano (16-88, ao invés de 17-89). Besteira? Não creio - embora não duvide - que Gaiman tenha escolhido este período propositalmente, especialmente pq ele o fez em 88, e não tinha como saber que o muro cairia dali a um ano (diga-se de passagem, no dia do seu aniversário). Mas parece-me sintomático que, não só a União Soviética tenha nascido e morrido enquanto Sonho estava preso, isto não seja sequer mencionado na HQ.

Independente disto, Sandman reflete uma imensa instabilidade de valores: se até os Perpétuos, que têm este nome, mudam, abandonam suas funções, e chegam a morrer, então o que pode ser, de fato, perpétuo? É porque esta é a época em que a HQ foi escrita. Um tempo em que um "sonho" que se julgava morto, um sistema de valores antigos (a democracia liberal?) retorna, apenas para descobrir que até as coisas em que ele mais acreditava, até ele mesmo, mudaram - e que no fim das contas, tudo muda. Uma sociedade que não consegue encontrar solo firme para pisar, conforto, valores universais e/ou eternos. Mas que, por isso mesmo, busca desesperadamente afirmar a eternidade. Nas palavras de Destruição:

"Deuses vêm e vão. Mortais lampejam, reluzem e se apagam. Mundos não duram. Estrelas e galáxias são coisas transitórias e fugidias que piscam como vagalumes e se desfazem em pó e frieza. Mas eu posso fingir."

Sem dúvida, não só ele.