2.11.05

Os Mortos Não Regressam, Os Deuses Não Caem - 2

O outro pareceu não ouvir, seguindo até as barras que separavam a cela do corredor, e que se abriram para ele na forma de uma porta que, até então, não estivera lá.

- É você? - prosseguiu o prisioneiro. - O que eu ouvi é verdade? É você, mesmo?
- Cyrian. - Kryptus respondeu, afinal. - Você não pode estar vivo.

O prisioneiro aproximou-se, estendendo as mãos para frente, forçando os olhos para tentar enxergar o rosto debaixo do capuz.

- Pelo Sétimo Céu, é você mesmo. Nome Louvado, o que. - ele chegou a recuar, ao avistar o brilho nos olhos negros de seu carcereiro. - O que houve com você, Kryp?
- Não me chame assim, traidor. Você não pode nem estar vivo. - as portas fecharam-se atrás dele, assim que terminou de falar. - Não devia estar vivo.
- Sinto decepcioná-lo.

Cyrian deu meia volta, alguns passos na direção da parede direita, onde se recostou.

- Você está com uma aparência horrível, Kryptus. Que diabos você andou fazendo?
- Centenas de coisas que não são da sua conta, traidor. E você também não está grande coisa.
- Ah, sim, aprisionado e torturado por fanáticos de um culto da morte. Não faz bem pra saúde.
- Não. Não faz.

Kryptus não moveu um dedo, aparentemente nem piscava o olho enquanto seu prisioneiro dava um riso abafado e se deixava escorregar até o chão, encostado à parede.

- Você está mesmo horrível. Não dá nem pra dizer que é oito anos mais novo que eu.
- Não sou mais.

Como estava apenas brincando, Cyrian demorou a perceber que o outro não estava.

- Hein?
- Não sou mais novo que você, traidor. E você não é mais meu padrinho, mentor ou veterano.

O riso que deu antes de responder foi incerto:

- Ninguém deixa de ser mais novo que ninguém, Kryptus.
- Claro que não, Cyrian. E os mortos não retornam para caminhar entre os vivos, e os deuses não caem.
- Do que você está falando, Kryp?
- Não me chame de Kryp. Cyrian estava prestes a levantar o rosto para dizer que podia muito bem chamar do que quisesse alguém que tinha visto crescer e a quem gostaria de ainda poder chamar de amigo; mas antes disto foi ele mesmo levantado pela mão magra de Kryptus, fechando-se sobre sua garganta, não mais coberta pela luva, e prensado contra a parede. Os dedos tinham uma força que não correspondia a seu tamanho e formato, e emitiam um brilho fosco, cinzento.

Tinha ouvido falar daquilo, do toque gelado. Julgara ser uma lenda. A sensação horrorosa de ter sua força sugada, seu rosto gelando, os ossos paralisando, mostravam-no errado.

- Não me pergunte nada. Você é meu prisioneiro. Eu vou lhe fazer perguntas, e você vai responder. E não vai me chamar de Kryp.

As respostas sarcásticas nas quais Cyrian conseguiu pensar não saíam da boca: faltava-lhe o ar. Quando Kryptus soltou-o e ele desabou no chão, sem forças, era duro admitir, faltava-lhe a coragem. Seu carcereiro afastou-se levemente, e prosseguiu.

- Você realmente não morreu; está ferido, então não pode estar morto. Mas isto ainda não explica como sobreviveu. Os acólitos foram todos massacrados, mas você está vivo. Como?
- A Luz. - ele conseguiu dizer, embora ainda não pudesse levantar. - A Luz me salvou.
- Ninguém nunca está a salvo.
- Ele veio a mim, Kryptus. Eu era um acólito da igreja dos mortos, mas ele sentiu o bem em meu coração e me salvou. O Arauto Celeste, o –
- Rei de Asas Prateadas, o Dragão Guerreiro, eu sei. Não quero sua pregação, traidor, quero respostas. O Lorde dos Mortos estava com os acólitos, e não pôde proteger nenhum de vocês, mal pôde escapar.
- Eu sei, eu estava lá, eu –
- Você não faz idéia de como escapou, faz?
- Eu não. Não me lembro bem. Só da luz, e de acordar seguro, no templo.
- Você não é só idiota, Cyrian. É um idiota inútil.

Ele já havia conseguido se reerguer o bastante para sentar, e para expressar em seu rosto o quanto estava, de fato, confuso.

- Você não falou com ele, depois? Com o Lorde? Ele não lhe contou?
- Ele não me contou muitas coisas.
- Onde ele está?

Era difícil dizer ao certo, mas Cyrian acreditou ter visto um sorriso formar-se no rosto de Kryptus, enquanto ele se aproximava e se agachava, ficando ligeiramente acima de si.
- Ah. Intenções verdadeiras não conseguem nunca se esconder.

Ele levantou o queixo do prisioneiro com a mão, já por debaixo da luva novamente.

- E você provou não ser de todo inútil. Afinal, era atrás disto que você estava, não, Cyrian? Do paradeiro do seu antigo mestre, a deidade inimiga?
- Nós ouvimos rumores preocupantes. Rumores impossíveis, sobre um homem que teria assassinado um deus. - ele engoliu em seco antes de completar - Onde ele está, Kryptus?
- Não faça perguntas. Eu já lhe avisei.

Cyrian desviou os olhos. Não conseguia mais encará-lo de frente, muito menos aceitar o que começava a parecer-lhe verdade. Tentou fazê-lo enquanto relembrava a imagem do garoto assustado que, antes de completar os nove anos, tinha sido levado ao templo, de dizê-lo que não tivesse medo e que ele estava seguro.

- Não pode ser verdade, Kryptus. Eu disse a eles que não podia ser.
- O tempo é igual para todos, os mortos não regressam, os deuses não caem?
- Sim, sim e sim!
- No entanto, eu não sou mais novo que você, e você morreu e não está mais morto.
- Kryptus ofereceu a ele uma pequena pausa, para que, no lapso de um único inspirar ofegante, ele tivesse tempo de surpreender-se, indignar-se e, afinal, perceber que era verdade. - E aquele a quem um dia chamamos de mestre, não vive mais.

Sim, ele estava seguro agora, mais do que nunca. Não era apenas incrivelmente poderoso: era o topo da escala hierárquica. Nem mais uma ordem superior ele precisava temer. Cyrian devia saber que ele era perfeitamente capaz de fazê-lo, mas mais que isso, que inevitavelmente o faria.
- Você fez mesmo isso. Como pôde? Como conseguiu?
- De maneira não muito diferente das que sempre usei. Animal, planta, monstro, homem, deus: no final, morrem mais ou menos da mesma forma.
- Ora, seu. Como você? Pelo Abismo, você não entende o que quero dizer?
- Não.
- Ele. Ele salvou sua vida! Criou você! Te ensinou tudo que podia! Ele, ele era quase seu pai, ele –
- Ele não permitiu que o que eu tinha de mais precioso vivesse.

Cyrian levou algum tempo tentando entender a que aquilo se referia. Não fazia sentido, mas só havia uma pessoa da qual ele podia estar falando.

Diana.