2.11.05

Os Mortos Não Regressam, Os Deuses Não Caem - 3

- Diana? Diana, Kryptus. Ela morreu em missão. Você viu, estava –
- Não me lembre daquele dia.
- Eu. - Cyrian iria pedir desculpas, mas deteve-se; não saberia dizer se por medo da reação, de fato, ou se por sentir que seu antigo amigo não as merecia mais.
- Como disse, nosso mestre não me contou muita coisa. Não contou o que acontecera a você. Não contou o que tinha planejado para mim.
- Você quer dizer que acha que ele a matou? Que ele planejou a morte dela?

"Para quê?", ele teria perguntado, mas a resposta completou-se sozinha em sua mente: para torná-lo o que ele é.

- Como você pode achar isso, Kryptus?
- Eu não acho, sei.

Típico.

- Foi vingança, então. Você o matou, vingou-se. Ótimo. Ótimo motivo. Então está resolvido.
- Você não concorda.
- Não, não concordo, mas principalmente, estou tentando entender duas coisas. Você matou o deus da morte, então porque ainda há um culto ao deus?
- Não há.
- Então o que é isto, o que você está liderando? Um culto a si mesmo?

Ele riu disto. Na maioria dos casos, uma gargalhada frente a uma ironia deste tipo costuma trazer alívio e descontração para a maioria das conversas. Se, como no caso, é a risada de alguém que apreciou a ironia, alguns talvez digam que certamente este é um claro chamado à leveza e à informalidade. Mas não o fariam, se tivessem ouvido Kryptus rir daquele jeito.

Cyrian tinha, embora tivesse dificuldade em recordar quando. Foi depois de Diana morrer – seu então discípulo jamais gargalharia daquele jeito enquanto ela estava viva. E alguém, muito tolamente, naquele dia buscara consolar o jovem dizendo-lhe que ela estava num lugar melhor.

O primeiro problema com a gargalhada de Kryptus era que ela era verdadeira, que ele estava realmente rindo; não estava tentando ser assustador, nem mascarar seu desconforto: só estava rindo. O segundo problema era que, apesar disto, não se parecia em nada com o riso de alguém que estava achando graça em algo; também não parecia o de alguém que tentava intimidar outros ou mascarar seu desconforto. Porque, e este era o terceiro problema, não se parecia com nada.

O murmúrio leve que nasceu em sua garganta cresceu para o riso, e para a gargalhada, sem ser o som, em nenhum momento, de nenhum deles. Quando murmúrio, assemelhava-se mais ao som de indiferença que alguns fazem quando, em algum momento, julgam que devem fingir interesse em algo que deveria ter-lhes parecido engraçado e não pareceu, sem, no entanto, esforçarem-se o bastante. Quando riso, era irritantemente uniforme e intermitente, curto, como um pianista com o dedo preso a uma tecla, um disco sujo. E quando gargalhada, a impressão que se tinha era de que ele estava, em cada sílaba de seu agora lento "ha, ha, ha", recuperando o fôlego, de que lhe faltava ar para emitir um som a altura de uma gargalhada verdadeira - uma que não fosse tão terrivelmente, medonhamente baixa, quase silenciosa.

Mas mesmo baixa, a gargalhada ecoou pelas paredes da masmorra, como ecoara pela capela tantos anos atrás. E era como se ela só se propagasse pelo silêncio, só o fizesse porque havia tamanho espaço desocupado, vazio. E como se ela mesma, e as paredes, e Kryptus, e todos os que o ouvissem, não significassem nada, não servissem a nada, não fossem nada.

- Você realmente não é inútil, Cyrian. - disse ele, entre restos de quase-riso. - Você me diverte.

Mas significavam alguma coisa, eram alguma coisa, e nem Kryptus, nem nada nele, era assim tão vazio.

- A outra coisa que não entendo - mentiu Cyrian, tentando o melhor que pôde ignorar a reação de seu carcereiro. - é Diana.

O que sobrara de riso morreu rápido ante a menção do nome, e a reação que talvez impedisse a fala de seguir, não chegou a surgir.

- Ela morreu, e você a amava. E você é o Senhor do Mortos. E ela continua morta.
- Sou, não era. - Kryptus conseguiu responder, mas sua certeza de antes mostrava sinais de enfraquecimento.
- E quando se tornou? Há quantos anos se tornou? Há quanto tempo você já lidera esta igreja?
- Não havia restos mortais, Cyrian. Não se faça de idiota, você sabe como essas coisas funcionam. - Tem razão, Kryp. Eu sei como essas coisas funcionam. Fui o sumo-sacerdote antes de você, e sei exatamente como se traz alguém dos mortos.
- Não me chame –
- E lembro muito bem que eu, embora certamente tivesse, e ainda tenha, muito menos poder que você, quando dominava as artes negras, não precisava de nenhum resto mortal para trazer alguém de volta. Nenhum mesmo.

Cyrian finalmente se levantou, finalmente conseguiu olhar Kryptus nos olhos.

- Era difícil, mas era possível. E pra você, Senhor dos Mortos, você que pôde até matar um deus, certamente é algo bem simples. Basta que se saiba o nome da pessoa, e que ela aceite voltar.

O rosto de Kryptus tornara-se agora, de alguma forma, claramente discernível por debaixo do capuz, mas de maneira alguma fácil de se descrever. Havia linhas e rugas que se tensionavam, que Cyrian jamais imaginara que estariam lá. Seus lábios, ligeiramente abertos, mostravam dentes trincados; fios de cabelo, muitos deles grisalhos, deslizaram para frente de seus olhos - cuja parte branca era agora visível - denotando um leve, e de outra forma imperceptível, movimento.

- Você ainda lembra o nome dela, imagino.
- Sim. - sua mão direita, que antes segurava o cabo da foice de forma desleixada, agora a apertava com força. - Lembro.
- E ela, ou o que quer que reste dela, onde quer que ela esteja, lembra de amar um homem de coração nobre. Um pouco amargo pelas perdas prematuras, mas um bom homem, alguém que não fosse um monstro conquistador de mundos e assassino de. Quantos? Quantos você matou, Kryptus, em quantos lugares, quantos anos?
- Não sei.
- Ela não quer voltar.
- Não. - Kryptus abaixou a cabeça, mirou o chão. Não conseguia mirar mais nada. - Não quer.
- Você pode ir embora a hora que quiser. Não tem mais um mestre, líder, deus. Não quer realmente conquistar mundos, levantar mortos, desafiar deuses. Nunca quis. Eu o conheço, Kryptus. Eu o vi crescer.
- Não pude ter o que eu quis, foi tirado de mim.
- E você desistiu. Não teve coragem para mudar.
- Não, não!

Kryptus estava de costas na parede, agora, e havia gritado, sem reparar em uma coisa nem outra.

- Diana tinha razão sobre você. Você ainda é uma boa pessoa, de algum modo. Posso ver isso agora muito claramente: ainda é o mesmo garoto mirrado e assustado que vi chegar no templo, e que chorava por qualquer coisa, e escrevia poemas bobos e sinceros em segredo. Ainda é o pequeno Kryp. Mas não quer ser. E isso, isso eu não consigo entender.
- Cyrian.
- Quê?
- Você vai morrer por isso. Eu vou te matar.
- Por que você faria isso? Pra quê? Não vai ajudar em nada, não vai mudar nada.
- Não. - ele respondeu, levantando a mão esquerda e fazendo dois sinais rápidos na direção de seu prisioneiro. - Não vai.

Ao terminar da frase, Kryptus então estalou os dedos, e a perna direita de Cyrian explodiu.

O berro de dor dele foi ouvido por todos os que se encontravam na fortaleza acima. A maioria gostaria de pensar que havia se acostumado àquele tipo de som, mas não havia.

Ströhlm, que se dirigia para lá para dar um recado a seu mestre, por outro lado, estava tão acostumado que já podia dizer que aquele era o grito de um homem que perdera um membro, e que provavelmente fora um perna. Isto era uma predileção de seu mestre, porque, dificultando a locomoção, geralmente levava o prisioneiro a contato direto e involuntário com seus próprios dejetos e urina ao longo de muitos dias de cativeiro. Era um bom sinal: significava que Kryptus já estava terminando, e que não seria necessário aguardá-lo sair.

- Mas não vou te matar agora. - a porta abriu-se atrás dele, enquanto a forma espaçosa de Ströhlm já podia ser divisada descendo a escada da masmorra. - Vou torturar primeiro, fazer isso aos poucos.

Cyrian não conseguia parar de gritar de dor e, portanto, não conseguia responder.

- Eminência. - Ströhlm saudou seu mestre, ao terminar a descida. - O sr. Peters está procurando pelo senhor em seu escritório em Nova Iorque, senhor.
- Não me lembro desse nome.
- Peters? É aquele que chamam de Shade, Eminência. O detetive.
- Não, quero dizer este lugar de que você fala. Nova Iorque. Não lembro desse nome.

Ele ainda lançou um último olhar para Cyrian. O ferimento dele já estava cicatrizando - não queria que ele morresse assim, tão fácil - e a dor, passando, mas ele não disse nada. Seu rosto dizia o bastante: mostrava raiva, dor, desespero, e até desejo de vingança, mas, principalmente, e contrariando o que esperava dele, piedade.

- Acho que minha memória não anda muito boa. - completou Kryptus, e subiu a escada; e a entrada fechou-se após sua saída, e as luzes se apagaram, deixando o prisioneiro sozinho.