12.1.05

A Cor De Seus Olhos

Distribuição em sala de aula, 6ª Série.

Raphael senta-se na frente. Tem o rosto fino, os cabelos castanho-claros, cacheados, olhos idem, óculos de aro vermelho. Presta atenção na aula, lê e escreve sobre coisas diversas enquanto o faz. Tem por hábito testar os professores com pegadinhas práticas. Joga RPG, lê Homem-Aranha; teve até hoje somente dois colegas a quem chamou também de amigos, mas tem certeza de que mereceram ser chamados assim. Guardou durante o último semestre inteiro todas as bolas de papel jogadas sobre si, e chegou a pensar em apresentá-las à coordenação como evidência, mas mudou de idéia e, no último dia de aula, levou-as todas num único saco plástico e arremessou-as de uma vez nos garotos de trás. Interessou-se por apenas uma única garota em sua curta existência.

Marcos fica atrás, no centro, quase no meio, caindo para os lados e até mais para a frente conforme o dia. É grande para sua idade, bem constituído, tem o rosto quadrado, os olhos claros e os cabelos longos, loiros. Chama a algumas dezenas de moleques de sua idade de amigos e, no momento, a três meninas de namorada, sem que nenhuma delas realmente lhe interesse. Vai ao banheiro uma vez por tempo de aula, levando o máximo de tempo possível cada vez que o faz, parando para conversar com todos que encontra pelo caminho; e todos, frequentemente, ficam felizes por conversarem de volta. Anda para a escola sozinho e, muitas vezes, vai à praia em vez do colégio, arrastando quem quer consiga no processo. Nunca passou de ano sem recuperação. Enfurecido com alguma coisa que lhe disseram, quebrou dois dentes de um menino, e foi suspenso por 3 dias.

Ivan fica atrás, no canto. Sempre o mesmo canto. Assiste à aula com as costas para a parede esquerda, braço sobre o joelho direito, e a perna dobrada. Os cabelos são lisos, negros, descendo até os olhos também negros, rosto redondo, meio pálido. Abre um meio sorriso torto para a esquerda ao invés de rir. Tira notas medíocres. Nenhum professor o reconheceria na rua, mas todos os alunos o fariam. Fala pelos cotovelos se interpelado, mas nunca chamou ninguém de amigo. Se tem, teve, e mesmo que venha a ter, interesse em qualquer menina, de qualquer idade, ninguém saberá sem que ele mesmo o diga.

Angela muda de lugar o tempo todo, está claramente deslocada na sala; fala com todos, não se liga a ninguém. A cor de seus olhos ninguém guarda direito, e isto não parece importar. Tem o rosto redondo, a pele branca avermelhada e os cabelos da cor do fogo, anos e anos a fio cultivados; pensa em cortá-los num ato de proposital rebeldia prá-adolescente, mas não sabe ir ao salão sozinha. Seu toque é gelado. Todos a quem uma vez chamou de amigos ficaram na escola anterior. Sorri pouco, mas de forma genuína. Aparenta a mais absoluta convicção, mas está, ou é, terrivelmente dividida. Interessou-se, interessa-se ou se interessará, por 3 meninos de sua idade. Em dado momento serão homens mas, por hora, meninos.

Raphael escreve-lhe bilhetes recheados de versos românticos, seus e de outros; não é brilhante mas,sem dúvida, comovente. Dscrevia cada gesto, cada pequena coisa que Angela fazia, cada detalhe de seu rosto, e sua voz, e explicava-lhe como ela fazia cada dia de sua vida mais feliz. Ainda cora e treme quando ela se aproxima, mas faz tempo que conversam durante as aulas, quando ficam para as atividades extra-curriculares à tarde, e por meio de bilhetes, torpedos e e-mails a qualquer tempo. Poucos dias atrás, ele inspirou forte, tomou a mão dela e declarou amá-la, no meio da rua, sem avisar. Ela não sabe porque regiu a isto beijando-o, mas sabe ter sido a primeira a fazê-lo.

Marcos abandonou outra para aproximar-se dela em uma festa americana. Angela acha-o lindo, uma graça. Ele a faz rir descontroladamente. Leva-a à praia, à lanchonete, festas, passeia com ela pelo recreio e a apresenta a dúzias de pessoas diferentes, conhece todos, conversa com todos, inclusive seus amigos do velho colégio. Ele a faz esquecer de seus problemas, deixa-a alegre, leve. Sabe fazer-lhe cócegas, e passar a mão pela sua cintura, segurá-la firme e surpreendê-la com um beijo antes que ela perceba ou tenha tempo de impedir - até porque, ela não impediria, e adora quando ele faz isso.

Ivan apareceu um dia, dentro do elevador do prédio dela, como se tivesse estado lá dentro esperando desde sempre. Nos dias subsequentes, surgiu em lugares diferentes da mesma maneira. Desperta-a de seu sono para passeios na madrugada e a leva a lugares proibidos; armazéns abandonados, rochas à beira-mar, bares e praças onde gente mais velha se reunia. Ele era até respeitado nestes lugares, e não os temia, parecendo adivinhar exatamente quando e como ela teme. Aliás, parece adivinhá-la sempre: sabe aonde ela quer ir, sabe quando e o quê quer beber, quando tem frio, quando quer voltar pra casa. Beijaram-se 3 vezes; todas elas, ele sorriu como quem já sabia de ante-mão, apontou algo atrás dela, e desapareceu.

Ela não sabe até quando pode esconder um do outro, e não liga.

Tempo.

2° Grau. Angela acaba de mudar de escola e entra para o teatro. Ivan é vocalista de uma banda. Raphael ajudou a escrever a peça que será apresentada no fim do ano. Marcos não fazia nada. Ela tem os olhos castanhos escuros.

A banda de Ivan faz a trilha da peça. Marcos aparece um dia no ensaio, por curiosidade; não há atores disponíveis e o diretor pede pra que suba ao palco para ajudar Angela com uma cena romântica. Gosta do resultado e o escala. Raphael e Ivan mordem-se de raiva e ciúme; o último escrevera boa parte da cena como uma declaração secreta para ela. Ivan sabota o texto de Marcos. No dia do ensaio geral, este erra as falas, sai-se mal, Raphael aproveita a deixa para humilhá-lo em público; Marcos quebra-lhe dois dentes. Ivan ri seu meio sorriso. Angela não consegue escolher um lado, não se conforma em ter de escolher.

Tempo.

Raphael, Marcos e Ivan racham um apartamento. O primeiro cursa física, o segundo, direito, o terceiro, psicologia. Angela volta ao Rio depois de viver 12 anos nos EUA, após a morte súbita e inexplicada do pai. Faz jornalismo. Seus olhos têm a cor do breu.

Ela conhece Marcos na praia, Raphael numa convenção, Ivan numa festa. Tudo começa a se complicar de maneira terrível. Os três a amam sem saber um do outro, mas ela sabe e não consegue revelar. Um deles estuda feitiçaria de noite, escondendo o fato até de si mesmo, através de uma outra personalidade; sem saber, também foi possuído por um espírito ancestral. Angela é seguida por um homem pálido de cavanhaque; acaba por raptá-la. Seu guardião no cativeiro, chamado Eduardo, alega que ela é a herdeira do poder divino, sem esclarecer o que quer dizer com isso, ajudando-a a escapar em seguida; seu mestre não atende por nomes, tem os olhos vermelhos, e Angela prefere não pensar no que ele faria com ela.

Os três amigos descobrem, ao mesmo tempo, que todos conheciam e amavam Angela. Agora as coisas estão dando fantasticamente errado. Um mal ancestral desperta. As estrelas desaparecem. Uma entidade de escuridão, profeta, diz que um dos três é o escolhido, o herói da história, o mago, o salvador do mundo: aquele que ela escolher, seu futuro esposo.

Mas ela não consegue escolher. Sabe que tudo depende dela escolher, mas sabe que, se o fizer, pode ser que tudo dê ainda mais errado, se é que isso seria possível.

Tempo.

___________________________________

"Continua"...