20.12.04

A Sutil Armadilha do Demônio

Isabella era canhota. Nunca achou que isso a diferenciasse muito do restante da humanidade e, afora uma ocasião em que sua tia-avó biruta tentou obrigá-la a comer com a direita quando muito nova, nunca havia lhe trazido nenhuma dificuldade. As carteiras do colégio onde estudara sempre foram de apoio largo o bastante para acomodar sua postura meio torta; tinha a caligrafia bonita, marcante, legível, e gostava de não ter que trocar os talheres de lado antes de comer em jantares formais.

Mas isto só durou até o dia de sua primeira aula na faculdade, por meio da qual ambicionava realizar o muito antigo sonho de ser professora, quando, ao entrar na sala, descobriu, para seu assombro, que lá não havia uma única carteira para canhotos. Buscas nas demais salas, tanto as vazias quanto as ocupadas, e até mesmo nos depósitos, foram em vão. Ela ainda retornou para o segundo tempo e tentou escrever se entortando para o outro lado, novamente fracassando.

Isabella sentia, pela primeira vez em sua curta existência, a dor da desigualdade. Estava indignada.

Com um mínimo de investigação descobriu toda uma história de injustiça e preconceito da faculdade com os canhotos, partindo de sua origem como ordem religiosa, numa época em que a canhotice era punida com mãos atadas, palmatórias, e até mesmo sessões de exorcismo em casos extremos. Até hoje o contrato de compra de carteiras deixava expressamente claro que apenas as destras seriam produzidas - o que valia um abatimento considerável, vale acrescentar. Na mente da jovem ia se clareando a perversa perpetuação de um preconceito milenar, ultrapassado e injusto. Aquilo mexeu com seus brios.

Ela iniciou ali o que se tornaria uma cruzada. Diante da inércia do Diretor, Vice-Reitores e Reitor, que após visitas em série logo aprenderam a reconhecer o semblante da moça à distância (e evitá-lo), ela passou a recolher abaixo-assinados de outros canhotos oprimidos pela faculdade, medrosos de manifestarem sua indignação ou, pior, ignorantes da magnitude da injustiça cometida contra eles; e não demorou para que também todos os alunos também aprendessem a reconhecer seu semblante a distância (e procurá-lo). Com simpatia e carisma ela logo conseguiu adesão da imensa maioria dos alunos à sua causa (destros inclusos), um fiel séquito de admiradores, uma vaga na diretoria e muito respeito no Centro Acadêmico. Tal força não pôde mais ser ignorada pelos dirigentes, que ao final de um ano de protestos concordaram em adquirir carteiras de canhotos suficientes para preencher um quinto do total em sala de aula.

Mas agora Isabella não tinha mais a intenção de parar aí. Ela sabia que em muitas outras faculdades e colégios espalhadas pelo país havia centenas de milhares de canhotos injustiçados, que precisavam de apenas uma voz, alguém que os despertasse e representasse, e não iria mais descansar até que cada um deles tivesse sua carteira. Passou a se articular e ganhar força dentro da União Nacional de Estudantes, aproveitando-se de sua flexibilidade política; promovia inspeções, palestras, reuniões de canhotos, passeatas. Percebeu que não bastava apenas assegurar as carteiras especiais: era preciso extirpar o preconceito anti-canhoto em todas as suas formas. Ela redigiu o primeiro manifesto pró-canhoto, organizou festas e eventos pró-canhotos, criou a cartilha de educação contra preconceito a canhotos e, como culminação de seus planos, lançou sua candidatura a vereadora, alavancando um até então partido nanico rumo a um papel significativo na política municipal, e iniciando o que seria uma promissora carreira com ideais nobres, ainda que quase impossíveis: era preciso tratar os desiguais desigualmente, através de ações afirmativas. Entre seus planos e propostas havia leis que garantiam a fabricação e venda a preços módicos de canetas especiais para canhotos, reserva de lugares à esquerda da parede em restaurantes, lanchonetes e afins, o direito de praticar pólo, além do plano máximo: a proibição e punição de qualquer uso público dos termos "canhoto" ou "sinistro" de maneira pejorativa, um ideal que consumiria a maior parte do tempo da vida e da muito bem sucedida carreira política de Isabella.

Que nunca mais pisou em uma sala de aula.