18.10.05

Dramaturgos

Eu reli meu maior calhamaço outro dia. E, depois, reli isto. Eu não me lembrava, não mesmo. Não tinha percebido as pistas que tinha deixado para mim mesmo nelas; nem muito menos o quão verdadeiro é este trecho - ou então percebi, e esqueci, que é o que fazemos com as coisas que nos incomodam.

"O que quer que tenha acontecido comigo e minha vida, aconteceu na qualidade de dramaturgo. Eu me apaixonaria ou me deixaria tomar pela luxúria. E, no auge de minha paixão, pensaria, "então esta é a sensação", e comentaria tudo com palavras bonitas.

Eu testemunhei minha vida como se estivesse acontecendo com outra pessoa. Meu filho morreu. E eu sofri muito, mas assisti à minha dor e até mesmo apreciei um pouco, pois agora poderia escrever mortes reais. Uma perda verdadeira.

A dama negra partiu meu coração e chorei, em meu quarto sozinho, mas enquanto me lamentava, em algum lugar dentro de mim, eu estava rindo. Pois eu sabia que poderia tomar meu coração partido e colocá-lo no palco do The Globe, e fazer a platéia derramar suas próprias lágrimas."

- Neil Gaiman, "Sandman - A Tempestade"

Sujeitinhos citáveis, estes ingleses...

16.10.05

Chimerae - 3

“Eis aí a Quimera”, declarou, sabendo que ela era ou havia sido, também, Thelkterion; e por ele não derramou lágrimas, mas também não conseguiu tirar-lhe nenhum pedaço do corpo, cauda, garra, pata ou cabeça, que pudesse provar sua vitória. Sem olhar para trás, deixou a torre, retornando ao lugar de onde viera.

Era noite quando ela alcançou o trecho onde os arredores da estrada dividiam-se novamente em dois, e avistou a figura de Hain em seu manto de duas cores.

“Saudações, companheiro!” Valina aproximou-se, alegre pela caçada bem-sucedida.
“Saudações, caçadora.”, ele respondeu, ainda com a moeda em mãos.
“Tuas direções foram certas, teus conselhos, falsos, e teus temores, infundados.”
“E por que seria isto?”
“Segui o caminho que me apontaste, encontrei a besta e a derrubei, sem que ela pudesse me ferir.”
“És jovem e tola. Seguiste o caminho que apontei, é verdade. Mas não encontraste a besta, e a ferida que agora carregas é a maior que carregarás.”
“Tolo és tu! Eu bem sei o que vi e pelo que passei!”
“Tu vês apenas o que queres, e o que viste é apenas um lado daquilo que já conhecias e, como moeda, tem sempre outro lado. Dize-me: foi um monstro que tua espada perfurou? Ou um homem?”
“Um monstro!”
“Então retorna lá, Valina, filha de Valmont. Ninguém nunca pôde impedir-te de seguir teu caminho, nem poderá, senão o último juízo de Mire, quando a lua for da cor do sangue e o terror vier do Oeste.”

Foi então que ela compreendeu que aquelas eram as palavras de um deus, a quem os antigos chamavam Ha, cujo nome principia o modo como até hoje alguns designam nosso lar, e que é o equilíbrio, a balança que tudo pesa, senhor das estradas, pai das medidas, e que não pode ter estado em todos os lugares porque é em todos eles.

Ela retornou, sem parar para descansar, comer ou dormir, para a caverna, tomada pelo desespero. Adentrando a torre e correndo até a sala de armas, encontrou um rastro de sangue que levava até o quarto, onde, na cama, jazia, agonizando de dor, Thelkterion.

“És tu que vem aí, Valina? Não consigo mover-me para ver teu rosto.”
“Sou” ela respondeu, mas não conseguiu aproximar-se. “Que se passou contigo, como foi que te feriste desse modo?”
“Não sei bem. Posso ter apenas delirado, ou sido vítima de um ardil.”
“Que queres dizer?”
“Sei apenas que um dia saíste para procurar a besta, Quimera, e quando regressaste, eras um bode. Apesar disso vi que era mesmo ainda tu, e disse que devias ficar na torre comigo, pois me sentia solitário, mas tu retrucaste que, pelo contrário, eu é que devia sair à caça contigo. Então, no dia seguinte, quando tentei fazê-lo, surgiste como um leão e me impediste, dizendo que não precisavas de minha ajuda, e quando voltaste, disse que procuraria mais um dia e, falhando, iria embora. Então, apesar de triste, fiquei contigo, mas acordei ao lado de um dragão; como ainda assim sabia que era na verdade tu, embora dragão, disse-te que não partisse, pois a queria sempre comigo, mas respondeste que nada te prenderia aqui, e que, se eu o tentasse, tu furarias meus olhos, derrubaria minha torre, lacraria minha caverna e arrancaria meu coração!”
“Sim”, conseguiu murmurar Valina. “Foi o que eu disse.”
“Custa-me crer”, retrucou-lhe o incrédulo Thelkterion, e prosseguiu. “Mas tinhas razão em não querer ficar aqui, pois minha torre tornar-se-ia prisão para ti, viajante. Por isso, quando terminaste tua última busca, fui ao teu encontro, e no caminho disse-te que, para onde quer que fosses, eu seguiria, e tu respondeste que eu em realidade não queria, nem poderia fazê-lo. Pois eu então disse que não queria nem podia era viver sem ti, e desci à sala esperando ver teu belo rosto, mas deparei-me com a fera terrível que tu procuravas, e que eu julgava nem existir! Então lutei com ela, e até pude feri-la com meu fogo e meus truques, mas ao final...”
“Ao final ela perfurou-te o coração com uma estocada certeira, e o deixou moribundo.”

Thelkterion arregalou os olhos.

“Eras tu! Maldita seja, tu e tua maldita caça de monstros!”
“Era? Eu nunca quis ferir-te.”
“Pois foi exatamente o que fizeste. E se há não muito tempo eu te disse, que se fosses embora, não precisarias preocupar-se em arrancar meu coração, digo-te agora: deixa-me, que já o destruíste!”
“Mas tu, teu ferimento! Vais ficar bem?”
“Não. Mas que isso não te impeça de partir.”

E ela partiu, lançando um longo olhar para ele, para o quarto, para a torre, para a caverna. Então principiou a chorar como nunca havia chorado, e entendeu qual era a ferida de que lhe falara Hain – que, ainda naquele dia, veio até ela nos arredores da entrada da caverna.

“Entendes agora?”, perguntou-lhe ele.
“Sim. Entendo quem é o outro lado da moeda, e entendo aquilo de que me falaste da primeira vez em que nos vimos.”
“Então alcançaste o equilíbrio, embora o preço pago tenha sido alto. E no futuro, que ele guie tuas ações e teus conselhos, e te permita sempre vislumbrar as moedas como devem ser vislumbradas, e distinguir as verdades das ilusões.”

Assim disse ele. E algum tempo depois, quando os dragões atacaram e iniciou-se a Grande Guerra, as quimeras uniram-se a eles e às outras grandes bestas, diz-se que foi a ela que Ethos e o Imperador pediram conselho, e que foi ela quem lhes disse que lutassem, embora poucos, ou talvez ninguém, compreendam seus motivos.

13.10.05

Chimerae - 2

Ele vestia azul, e seus cabelos enrolavam-se à frente de seus olhos claros como o céu, e sorria um sorriso despretensioso, como quem ri de uma criança tropeçando enquanto aprende a andar.

“Quem és tu?” indagou-lhe Valina, espada em riste.
“Sou o senhor da torre. Não me chamaste?” riu-se ele, na resposta. Não portava nenhuma arma, nem tinha, aparentemente, nenhum medo.
“Chamei.”
“Pois agora me diz teu nome e o que tencionas em meu lar, viajante.”
“Meu nome já disseste, e nada quero com teu lar, mas com o monstro que, me foi dito, encontraria aqui.”
“Ah, certamente que não o disseram, pois aqui não se encontra nenhum monstro, Valina, nem eu permitiria que um aqui vivesse.”
“E como devo chamar-te, senhor da torre?”
“Chama-me de Thelkterion, e aceita minha hospitalidade, que já é noite lá fora, e certamente andaste muito para chegar aqui.”

Ela aceitou, hesitante a princípio, e adentrou a torre de paredes prateadas onde, guiada por seu anfitrião, conheceu maravilhas que jamais pensaria existirem. Viu animais multi-coloridos, pintados e listrados, alguns tão grandes quanto uma casa, outros que falavam na língua dos homens. Em um andar, podia caminhar pelos ares como se nadasse em um grande lago; em outro, subir pelas paredes como uma aranha. Num quarto, era rodeada por estrelas, e em outro, pelo brilho do sol, e o chão era como a areia úmida da praia. Havia uma biblioteca de livros que se escreviam sozinhos, multiplicando-se ao infinito, revezando em prateleiras que eram sempre limpas como novas.

E Thelkterion, por sua vez, era quase tão inusitado e incrível quanto sua residência. Ele podia fazer fogo, água e gelo com as mãos, e a seu chamado, atendiam todas as aves da noite, ao lado dos quais podia voar como se caminhasse pelos céus. Podia fazê-la pensar que estava onde não estava, que via o que não via, e podia soar como qualquer pessoa, animal ou besta que ela conhecesse; e conhecia o nome secreto de mil homens e lugares, e tinha guardado em frascos a brisa do mar, o sopro gelado das montanhas do norte e a tempestade do deserto. Percebendo como ele sabia muito sobre tudo que habitava a terra de Heshna, Valina decidiu perguntá-lo sobre o alvo de sua caçada.

“Apenas uma lenda, que eu saiba”, respondeu-lhe Thelkterion, “mas lendas dizem muito.”
“E o que elas dizem sobre este monstro?”
“Há um poema, que diz que não havia quimeras no mundo, pois elas não têm lar nem época. Até o dia em que surgiram, e então surgiram em todos os lugares e todos os tempos, e por isso nenhum mortal pode encontrá-las.”
“Pensei que houvesse apenas um destes monstros.”
“Como disse, não acho que haja nenhum. Mas havia um povo que dizia que a verdade é uma só, e as mentiras são muitas.”
“Parece-me muito sábio.”
“Parece-me uma tolice.”
“É que tu gostas dos muitos lugares e dos muitos truques. E gostas de nomes longos como os teus, porque és como todos os homens.”
“E tu dar-me-ia um nome curto, como fazem as mulheres?”
“Se deixares, chamo-te, de agora em diante, Kterion.”

Ele sorriu um sorriso dúbio ao ouvir isto, e ela entendeu que já o haviam chamado por tal nome uma vez.

“Se deixares.”, ela repetiu.
“Deixo.”, ele respondeu.

E, como é natural às jovens, quando encontram com alguém belo e trocam com ele belas palavras e momentos, ela entregou-se a ele naquela noite, e dormiu o mais agradável dos sonos em sua cama, com a colcha adornada por estrelas reluzentes.

Despertou no fim da manhã, enquanto Thelkterion ainda dormia, vestiu sua armadura, apanhou suas armas, e já se punha na direção da porta, quando ele, despertando, a chamou:

“Vais aonde, viajante, tão cedo? Não te agradas da minha cama e minha companhia?”
“Tu, tua cama e tua casa em tudo me agradam. Mas sou o que sou, e vim aqui caçar uma besta, não usufruir de tua companhia.”
“Fica aqui mais um pouco! Não há nenhuma besta lá fora, e há pães, vinhos e carnes para nosso desjejum, de que certamente nunca ouviste falar, e uma varanda da qual poderemos ver o sol se pondo, e um vidro de água na qual nadaremos como se estivéssemos no oceano. Fica!”
“Não.”
“Então ao menos volta, mais tarde, quando desistires de procurar lá fora aquilo que não está lá nem podes encontrar!”
“Está bem, então: se, ao final do dia nada tiver encontrado, voltarei.”

Assim fez: o restante do dia investigou a caverna, que era muito maior do que parecia, e todas suas paredes, rochas e passagens, mas nada encontrou; e ao final do dia retornou à torre, cuja porta estava para ela, agora, aberta. Mas quando adentrou o quarto onde havia deixado Thelkterion mais cedo, deitado sobre sua cama encontrou apenas um cabrito.

“Sai desta cama, animal”, gritou Valina com ele, e tentou afugentá-lo com sua espada, mas ele não saiu, e, para sua surpresa, retrucou.
“Porque sairia? Esta é minha cama.”
“Esta cama é de Kterion.”
“Eu sou Kterion.”

Ela abaixou a arma, entendendo que era verdade.

“Por que não ficaste aqui e cuidaste de mim?”, baliu a criatura. “Esta torre sem ti é vazia e sem encanto, e agora, sozinho, não consigo nem ao menos deixar este quarto ou encontrar os lugares onde guardo minha comida.”
“Talvez,” principiou ela em resposta, apiedando-se dele, “talvez tenhas razão. Talvez eu deva cuidar de ti.” Porém então a piedade sumiu-lhe do peito, por ser ele tão fraco e suplicante, e ela prosseguiu com veemência: “Mas talvez tu também devesse ter me ajudado a descer e procurar o monstro, tu que caminhas no ar e faz fogo com as mãos, tu que sabes o nome de mil criaturas e guarda frascos de brisa. Se tu tivesses me ajudado, certamente eu teria encontrado minha presa sem correr nenhum risco, se tu também cuidasses de mim!”
“Talvez tenhas razão”, o bode sussurrou. “Perdoa-me, deixa-me cuidar de ti, deita-te de novo aqui comigo!”

E ela deitou-se, e novamente dormiu com Thelkterion debaixo da colcha adornada por estrelas reluzentes, embora ele fosse um bode; e assim que o fez ele retornou à sua forma de homem, e tiveram ambos um sono agradável.

Quando despertou, porém, Valina não encontrou ninguém a seu lado na cama, e descendo as escadas, próximo ao portão aberto, avistou um leão.

“Alto, quem és?”, ameaçou-o, sacando a espada.
“Sou Thelkterion!”, o animal rugiu em resposta. “Sou Thelkterion celeste, posso caminhar no ar e fazer fogo com as mãos, e sei o nome de mil criaturas e guardo frascos de brisa. Se há uma besta lá fora, ela será minha presa, e eu não necessitarei da ajuda de ninguém para encontrá-la e matá-la eu mesmo!”
“Talvez”, principiou ela em resposta, respeitosa de seu poder, “talvez tenhas razão”. Porém então o respeito sumiu-lhe do peito, por ser ele tão prepotente e arrogante, e ela prosseguiu com veemência: “Mas eu é que vim em busca desta besta, e foi a mim que o povo daqui pediu ajuda e instruiu. Eu é que devo caçá-la, pois sou Valina, espadachim, arqueira e domadora, assassina de monstros, protetora de homens, andarilha de todos os caminhos! E não necessitarei da ajuda de ninguém para encontrá-la e matá-la eu mesmo!”
“Talvez tenhas razão”, o leão sussurrou. “Perdoa-me, não devo interferir em tua missão, não a impedirei; vai, procura e mata tua presa, se puderes. Mas ao menos volta aqui à noite, se ainda achar agrado por mim em teu coração.”

Ela foi e, convencida de que nada havia na caverna, deixou-a e vasculhou a floresta, cada folha, árvore e arbusto, e não encontrando nenhum sinal do monstro, quando a noite baixou voltou, exausta, para a Torre, e encontrou Thelkterion, novamente um homem, esperando-a na porta.

“Mais uma vez, nada pude encontrar”, disse-lhe, “amanhã, procuro pela última vez, no único lugar em que não procurei. E se não encontrar nada, partirei.”

Ele mostrou-se muito triste ao ouvir isto, mas nada disse, e passaram o resto da noite juntos como se nada daquilo houvesse acontecido, e dormiram o sono agradável, debaixo da colcha adornada por estrelas reluzentes.

Quando acordou no dia seguinte, Valina dormia ao lado de um grande dragão de escamas vermelhas.

“Sai desta cama, monstro!”, berrou, rapidamente saltando de espada em riste.
“Quem não sairá deste quarto és tu, mulher!”, respondeu a besta com um rosnado que era como um trovão, e as paredes da sala tremeram e as janelas se estilhaçaram. “Pois é meu desejo ter sempre contigo conversas, e que sempre chame pelo nome que me deste. E quero sempre poder ouvir tua voz mansa, correr as mãos pelos teus cabelos lisos, sentir a tua boca, a pele macia de teus seios, teus braços, tuas coxas, o cheiro que deixas em minhas colchas de estrelas reluzentes. Tu ficarás aqui e farás tudo que eu te disser!”
“Ou o que?”, disse-lhe Valina, e sua voz não era mais mansa.
“Ou queimarei teus cabelos, dilacerarei tua pele, arrancarei tua cabeça de teu pescoço alvo, que eu prefiro-te morta a longe de mim, e não serei negado!”
“Talvez,” principiou ela em resposta, temerosa de sua fúria, “talvez tenhas razão.” Porém então o medo sumiu-lhe do peito, por ser ela tão valente e habilidosa, e prosseguiu com veemência: “Mas é meu desejo estar sempre viajando, e que possa sempre mudar de lugar para lugar. E quero sempre poder ouvir o murmúrio do vento e do mar, sentir o cansaço das andanças nas pernas, o prazer de conhecer nova gente, de cavalgar, de uma boa luta de espadas, do dobrar das cordas dos arcos e do zunido das flechas, de uma vitória suada. Eu irei para onde quiser e tu não poderás me deter!”
“Ou o que?”, urrou o monstro.
“Ou furarei teus olhos, derrubarei tua torre, lacrarei tua caverna e arrancarei teu coração, que prefiro estar morta a aqui presa, e não serei negada!”
“Talvez tenhas razão”, o dragão sussurrou. “Perdoa-me, não devo deter-te aqui, nem muito menos quero ferir-te, nem sei se poderia fazê-lo. Vai aonde te aprouver, apenas lembra de mim, e saibas que, se te fores, não deves te preocupar em arrancar meu coração.”

Mas Valina não saiu da Torre, pois era este o último lugar onde deveria procurar, e de fato as palavras de Thelkterion, dragão ou não, trouxeram-na as memórias dos momentos agradáveis, e ela não sentia mais o ímpeto de partir. Não encontrou nada, porém, e quando se sentava para descansar de sua busca frustrada, uma voz ecoou pela torre.

“Valina, onde estais? Para onde vais?”
“Estou no salão das armas, e não vou a lugar algum.”
“És viajante, estarás sempre indo a algum lugar”, prosseguiu a voz, que era, e não era, a de seu hospedeiro. “E eu desejo ir contigo.”
“Não sê tolo, Kterion. Tu tens tua torre, teus livros e teus quartos para cuidar, e todas as maravilhas que quer. Não queres de fato sair daqui, nem acho que possa; não és viajante.”
“O que não quero nem posso,” completou, aproximando-se cada vez mais, “é viver sem ti.”

E assim que terminou de falar, adentrou a sala, mas não era mais Thelkterion. Seu corpo peludo era, sustentado por quatro patas terminadas em garras afiadas, e em seu ombro direito havia a cabeça de um bode, no esquerdo, a de um leão, e sua cauda era também o pescoço escamoso e avermelhado, que levava à face de um dragão hediondo.

Valina sacou de pronto sua espada e defendeu-se do monstro, que tentou devorá-la; durante longo tempo lutaram, e ela feriu-se muito com o fogo, os chifres, os dentes e as garras, mas ao final perfurou-lhe na altura onde deveria ficar o coração, e a besta caiu derrotada.

11.10.05

Chimerae - 1

Há muito tempo atrás, quando o Grande Império cobria a Terra, e os dragões e os deuses caminhavam entre os homens, e as duas luas ainda eram brancas, viveu uma mulher chamada Valina, que entre os antigos significava "viajante".

Valina não conheceu seus pais, nem o lugar onde nascera. Foi criada por um caçador de monstros chamado Valmont, que dizia tê-la encontrado na estrada e não saber nada nem sobre uma coisa nem outra, embora ela mesma desconfiasse que lhe escondia algo. De todo jeito, amava-o como a um pai, e aos mercenários que o acompanhavam, como família.

Cedo aprendeu a caçar, orientar-se na selva, na montanha e na planície. Criança, era magra e tinha a pele muito lisa e suave; mas logo o exercício diário e as intempéries da vida de viagem e risco calejaram suas mãos, enrijeceram sua pele, alteraram a expressão suave de seu rosto. Ela não gostava de seus cabelos totalmente lisos, que denunciavam sua origem estrangeira e o não-parentesco com Valmont: buscava cortá-los, amarrá-los ou ao menos, desarrumá-los, em vão. Aprendeu, por observação e, mais tarde, por rebeldia, as artes da espada, da montaria, e do arco, e mesmo entre os do grupo seu talento era sem par, embora todos, por terem-na como irmã ou como filha, a poupassem de todos os riscos e a impedissem de participar das batalhas. Então, um dia abandonou-os sem aviso e foi viajar por conta própria, em busca de aventura, e de sua terra natal.

Naquele tempo havia também grandes bestas, muito mais terríveis do que as que hoje conhecemos, que a generosidade dos deuses lacrou em lugares remotos, junto com os dragões, após a Grande Guerra, que mesmo os maiores heróis temiam caçar. Pois diziam que no sudoeste, que hoje chamamos de Illwar, vivia uma enorme besta alada de três cabeças conhecida por Quimera, que surgia inesperadamente, trazia morte e fogo em seu encalço, e desaparecia, sendo qualquer herói incapaz de encontrá-la ou feri-la.

Passando por lá, Valina foi abordada por um homem alto, cujas vestes eram brancas de um lado e negras do outro, e que andava jogando para o ar uma moeda prateada. Ela normalmente o ignoraria, como costumava fazer com quase todos; mas percebendo que ele não possuía bagagem nem arma e, portanto, talvez estivesse perdido ou desabrigado, embora seu rosto fosse muito sereno, abordou-o.

“Viajante”, aproximou-se, com a palavra que era também seu nome, “aonde vais desarmado e desprotegido? Acaso estás perdido ou em falta do lar? Se precisares, aceita aqui um pouco de minha comida e minha água, e te darei proteção e farei companhia pela noite.”
“Diverso de ti, guerreira,” respondeu o homem, “não sou nem nunca serei viajante.”
“Então, moras aqui?”
“Este é meu lugar. Ainda assim, de bom grado, aceitarei tua oferta, se ela foi mesma sincera.”
“Foi. Qual teu nome, estranho?”
“Podes chamar-me Hain.”, ele retrucou, seu nome significando “medida”, do qual derivou a moeda que, por séculos, usaram mais tarde em Narn.

Sentaram-se então ao redor de uma fogueira e comeram, embora o estranho não despejasse a primeira gota da bebida para Heryina, como muitos de nós fazem para a Deusa até hoje, e tiveram uma conversa agradável, pois as palavras dele eram belas e ponderadas, e ele sabia de muitas coisas de muitos lugares onde ela ainda não estivera.

“E tu estiveste? Em todos os lugares de que me fala?”
“Não.”
“Então como sabes tanto sobre eles?”
“Tu precisas ser outra pessoa para conhecê-la?"
“Não, mas precisas conviver com ela, conversar com ela.”
“Exatamente.”
“Não entendo.”
“Chegará o dia em que alcançarás o equilíbrio para aconselhar os homens a tomar a maior decisão que já tomaram. Então, entenderás.”

Ela calou-se por um momento, sem conseguir dar sentido adequado às palavras do homem, até que, deixando de lado tanto o maravilhoso conselho quanto a profecia, sem se dar conta da importância de ambos, preferiu mudar o assunto e indagá-lo sobre outra coisa:

“Hain, tua companhia me é muito agradável e tuas palavras parecem-me muito sábias, de modo que nem considero esforço dividir contigo minha água e comida, ou meu tempo. Ainda assim, pedir-lhe-ia um favor em retorno.”
“Concedê-lo-ei, se em meu poder estiver; não há favor que não traga retorno.”
“Este é teu lugar. Acaso sabes de uma besta conhecida por Quimera, que dizem viver por estas bandas?”
“Sei. E diria para manter-se longe desta, se achasse que minhas palavras a dissuadiriam.”
“Como posso encontrá-la?”

O homem pareceu suspirar levemente antes de prosseguir, embora tanto o suspiro quanto o seu respirar fossem quase inaudíveis.

“E o que farás à Quimera, espadachim?”
“Eu caço monstros. E foi o que me ofereci a fazer para o povo das redondezas. Ela é minha presa.”
“Pois bem.” disse-lhe Hain, em seguida apontando para uma trilha atrás de si e a sua direita. Era pequena e quase inteiramente coberta; à direita dela, a vegetação crescia frondosa com muitas flores de várias cores, e à esquerda, era um marrom uníssono, com grandes e velhas árvores de grossos troncos. “Se seguirdes por esta trilha, é certo que a Quimera cruzará teu caminho.”
“Então devo andar aqui e supor que, por chance, a encontrarei, então?”, Valina retrucou, sem poupar uma pitada de ironia, talvez julgando que ele fizesse o mesmo.
“Quimeras não se encontram, caçadora. Muito menos por chance.”

Dizendo isto, deitou-se de costas em uma rocha próxima e, levando as mãos à nuca, acrescentou:
“Durmo aqui também, se não te importas. E aconselho-te a fazer o mesmo, se desejas ainda empreender tua caçada.”

Assim o fizeram, e Valina dormiu um sono agitado, de sonhos em que seu pai e seus amigos tentavam, mais uma vez, dizê-la que não devia nunca caçar monstros, o que era trabalho para homens, e impedi-la de manusear a espada e armar o arco. Acordou num ímpeto e não viu sinal de Hain quando despertou, o que não a surpreendeu; arrumou suas coisas e seguiu pela trilha que ele indicou, impulsionada pelas palavras trazidas pelos sonhos.

Por um tempo a trilha continuava como começara, com dois lados bem distintos, e Valina cruzou com alguns habitantes de ambos os lados: os da esquerda eram sóbrios, de poucas palavras, educados e voluntariosos; os da direita, brincalhões, risonhos, falastrões, mas, com freqüência, subitamente ríspidos e mal-humorados. Quando indagados sobre a Quimera, os primeiros diziam-na que tomasse cuidado com a caverna ao fim da trilha; os últimos, que nunca tinham visto nem ouvido falar de tal besta. Ao final de um dia, porém, o lado esquerdo gradualmente cedeu espaço para as flores e folhas coloridas, e quando deitou-se para dormir, Valina já se via rodeada por elas.

Ainda na manhã deste dia, a trilha terminou em uma caverna, e como o povo da margem esquerda da trilha dissera-lhe que tomasse cuidado, ela supôs que o monstro lá estaria, e entrou com cautela, de armas à mão, enquanto descia na escuridão. Porém ao virar da primeira curva, deparou-se com o topo de uma enorme torre de prata, descendo rumo ao vão das paredes rochosas, que reluzia como a lua cheia e iluminava tudo com um brilho esplendoroso. Ela desceu até o portão, e bateu e exigiu falar com o senhor da torre. Ninguém lhe deu respostas, nem, aparentemente, desceu para falar – mas, quando ela virou-se de costas, ele já estava lá.