27.5.05

Assunto Novo

Ando ocupado, mas tive tempo de ir ver o Guerra nas Estrelas novo outro dia, e alguns comentários eu não posso deixar passar.

Ok, ótimo, ele é melhor, diria que dos 3 novos é disparado. Também pudera, com tanta tragédia acontecendo, o George Lucas teria que ser muito mau diretor pra estragar a própria ótima estória (ele é definitivamente seu próprio pior inimigo). Há algumas cenas deploráveis que são difíceis de omitir, mas omitirei por falta de paciência.

Se querem ver o que um bom diretor pode fazer com guerra nas estrelas, não precisa nem de Império Contra-Ataca: pegue um episódio qualquer de Guerras Clônicas, do Tartakovsky. Sim, eu também torci o nariz quando me mostraram ele, mas tenha um pouco de tolerância às opções estéticas do desenho, que são meio estranhas mesmo, e você verá que é excelente, bem melhor que os eps. I e II.

Ah, sim, e por falar em clichê... Darth Vader também matou a mulher. A monomania é universal...

16.5.05

Vai Ter Debate no Céu (mas filósfo de boca grande não entra...)

Ao contrário do que diriam alguns defensores da democracia, Platão, quando morreu de sua morte morrida lá se vão uns 23 séculos e meio, foi pro Céu. Sua felicidade por confirmar a tese da imortalidade da alma e a existência de um único Deus todo-poderoso - que o fez caminhar até as residências celestes de alguns velhos sofistas, apontar-lhes o dedo e berrar "não disse?!" - foi logo interrompida por um discreto Xenofonte, que tratou de avisar o bobalhão que o Deus dos deuses era, na realidade, de um estranho tipo muitos-em-um (Pai, Filho, Espírito Santo e, sob divergências, um tal de Amém), e também que as almas não transmigravam porra nenhuma, que ele ficaria ali bestando até o dia do Juízo, e que o Céu era, na verdade, e de maneira incontestavelmente objetiva, exatamente como descrito pela cultura da popular anedota brasileira, que ainda levaria um par de milhares de anos para ser construída, tendo inclusive como porteiro um tal Pedro que, paradoxalmente, nem tinha nascido.

Sem muita saída o grego conformou-se, e passou milênios alegres discutindo o sexo dos anjos com seus amigos, conforme foram chegando; adorava quando Sócrates, em dias inspirados, detinha alguns anjos nas paragens e indagava-lhes: "mas o que é o sexo, afinal?" Não foi de se espantar quando acabaram exilando o dito cujo para o Inferno por acusar Jesus Cristo de plágio, perguntar à Virgem Maria o que era, afinal, a virgindade e, cá entre nós, por ser chato pra caralho.

Aí um belo dia, protestos do pessoal do "comunista come criancinha" e ateísmo do próprio à parte, Marx foi parar por lá também. Depois de passar algumas décadas em estado de choque por descobrir que... bem, que os metafísicos estavam certos, ele teve um curto período de contestação da autoridade da classe divina, que Deus tratou de apaziguar com argumentos muito simples:

- Olha só, Marx. Desde que você chegou aqui, eu lhe dei alguma ordem ou mandei fazer alguma coisa?
- Hã... pra dizer a verdade... não, Senhor.
- Então vou mandar pela primeira e última vez: fica na tua.

Deixado para trás este momento de rebeldia, e diante da nova realidade celeste, Marx resolveu passar seus dias construindo uma nova dialética materialista. Protesto de Engels, que estava muito ocupado com descobertas mais práticas acerca do sexo dos anjos ("definitivamente fêminino!" dizia ele):

- Arranja outro nome pra essa merda, Karl, essa história de materialismo não pega bem por aqui, não...

Dito e feito, não demora muito Marx leva um esporro de Miguel ("a Justiça parece material pra você?! E o fio da minha espada?! Hein?! Hein!?") e passa a chamá-la de dialética celeste, pra cair no agrado geral. Consistia basicamente em enunciar que o meio de "produção" do reino dos Céus - a vinda de almas da Terra, única coisa que chegava perto da idéia de produtividade - ditava a organização do meio social, e que a classe que detinha os meios de produção é que ficava no topo da pirâmida, dominando as demais ("mas um domínio benigno", acrescentava sempre, lançando olhares rápidos ao redor).

Então pois bem, um belo dia, não muito tempo atrás, está passando Platão de um lado, cruza com Marx vindo do outro, cumprimentam-se, apresentam-se, e o primeiro apressa-se a perguntar:

- Meu caro Marx, vale dizer que sua teoria da dialética celeste já alcança grande fama aqui por estas paragens, e chegou por diversas vezes a meu ouvido, e não pude deixar de me incomodar por ela.
- E porque viria a ser isto, camarada? (a esta altura já tinha pego o cacoete de Lênin)
- Bem, veja. O que diz com sua tese é que, corrija-me se houver algum erro, a chegada de almas, que, vale notar, é fruto de um acontecimento terreno, material, que é a morte, é que determina a estrutura da pós-vida aqui, no Céu.
- Correto.
- O que implica que, indiretamente, o que ocorre na Terra é que determina o que ocorre no Céu?
- Ora, Platão, esta é certamente uma ótica simplista. Veja bem que é Deus quem traça o destino de todas as vidas e mortes antes mesmo de nascerem, logo sendo Ele, no fundo, o verdadeiro determinante, e o que o senhor alega começar na Terra, começou, em verdade, no Céu mesmo!
- Parece-me razoável que diga isto, mas poderia, então, responder o que leva Deus a planejar estes momentos?
- Quem pode saber os desígnios de Deus?
- Ora, certamente não pode crer que qualquer fator externo tenha o poder de influenciá-Lo?
- Isto seria arguível.
- Parece-me óbvio que Deus só pode extrair seus desígnios de um único lugar, que é a própria Idéia primordial, e que é também a Virtude, a Verdade e o Bem.
- De maneira alguma. A Idéia é que foi gerada por Aquele que a pensou, ela é o produto de Deus e não sua Senhora!
- Pois acredita então que é a matéria que cria a idéia e não o contrário?
- Certamente que sim.
- E na existência material de Deus?!
- E o senhor não esteve na presença Dele quando chegou?
- Nunca ouvi tamanho absurdo!
- E acaso pensa o contrário, que a idéia é que gera a matéria?
- Como pensar outra coisa?
- É louco! A matéria é que veio primeiro!
- Idéia!
- Matéria!

Não demorou nada pra coisa descambar pra velha discussão do ovo e da galinha (Platão pelo ovo, Marx pela galinha).

Platéia já formada e uma falta de ordem enorme no debate constatada, resolveram arranjar um árbitro. Platão rapidamente emendando com um "seria terrível que nos deixássemos arbitrar por alguém inferior ao grande Marx" - sob os violentos gritos de Protágoras ("Vira o disco, porra!") - resolveram que tinha que ser mesmo alguém de calibre divino, e foram convidar Deus. Mas Deus-Pai estava muito ocupado comendo seu churrasco, tomando sua cerva e torcendo pela merda do time do Flamengo que, de tão ruim que andava, nem Ele estava conseguindo ajudar; e o Espírito Santo por sua vez simplesmente não parecia... adequado ("O que você sugere, conversar com a pomba? Ou vamos só sentar e esperar por um bando de visões alucinadas?"). Então, depois de uma tentativa deveras frustrante com Santa Maria - que retrucou simplesmente que "os dois tinham razão", e deu um doce a cada um - a tarefa da arbitragem acabou mesmo sobrando pra Jesus Cristo. Com Pedro e Paulo de bandeirinhas.

A título de experimentação concreta, põe-se um ovo de galinha entre ambos.

- Então? - indaga Jesus. - Qual o debate, exatamente?
- Bem, Santíssimo, - principia Platão - estávamos debatendo sobre a origem primordial da existência, e eu estou defendendo que o ovo, sendo o emanador, o originador da vida, que contém em si a estrutura, ou a idéia da mesma, é que veio primeiro.
- Hm, sei.
- Já eu, - intervém Marx - não posso aceitar um absurdo destes, tendo em vista que o ovo jamais poderia existir sem um animal que o pusesse. É seu pré-requisito material de existência.
- Aham. - boceja Cristo. - Muito original.
- Mas e de onde teria vindo o animal? De outro ovo!
- Bem, o senhor obviamente não tem evidência material para este tipo de conclusão.
- De onde mais viria?
- Seria difícil lhe explicar, vez que se trata de um caso onde certamente se aplicaria a teoria evolucionista, um conceito que vocês, antigos, não alcançaram...
- E baseado em que evidência material o senhor diz isso?
- Houveram experiências e observações nas ilhas Gallapagos...
- A observação humana é incapaz de obter tamanha Verdade, enxergando apenas as sombras da caverna.
- O senhor está se desviando do assunto.
- Pelo contrário, o senhor é que claramente ainda não compreendeu do que se trata. Permita-me ilustrar isto com um mito, que os gregos contavam, acerca da 2ª Tarefa de Hércules, que era encontrar o ovo -
- A 2ª tarefa não era a da Hidra? - interrompeu Jesus.
- Hã... sim, como eu ia dizendo, era de encontrar o ovo da Hidra.
- A Hidra nasceu de um ovo?
- Er, é, é claro.
- E quem botou?
- Arrá! - irrompeu Marx, triunfante.
- Esperem, deixem-me ilustrar melhor com uma outra lenda. Suponha que Hera abrisse uma cantina onde fizesse salgados particularmente fresquinhos...
- Ah, não, não e não, chega. - cortou Jesus. - Isso não está indo a lugar nenhum.
- Bom, e qual seria Vossa sugestão, ó Filho?

Silêncio constrangedor, até Jesus finalmente se pronunciar de novo:

- É comigo?
- Sim, convosco, quem mais seria? Parte do 3 que é 1, Pai, Filho, Espírito Santo!
- Amém.
- Cale a boca, Pedro. Sim, sim, sou eu, claro. Que tem?
- Como o que tem? Quero saber vossa sugestão!
- Ah, minha sugestão, claro.
- Acabais de dizer que não estamos indo a lugar nenhum.
- Suponho que o senhor saiba - Marx completou, levemente irritado.
- Saiba?
- Quem nasceu primeiro.
- Ah, sim, claro. Hã, como era mesmo no livro, hein, Pedro?
- "Faça-se a Luz!"
- Não, não, mais pra adiante.
- "Criador do céu e da terra..."
- Mais, mais.
- "Criou todos os animais e disse ao homem..."
- Um minuto, um minuto. - Marx interrompeu novamente. - Certo, Ele criou os animais, mas criou também uma galinha pronta, sem que ela tivesse de sair do ovo?

Pedro dá de ombros. Jesus tenta de novo:

- E aquela do João?
- "No princípio era o verbo"...?
- Bem, em se admitindo esta tese, restaria ainda saber: alguém pronunciou o verbo? E em que tempo verbal ele foi conjugado?
- Chega! - bradou Platão. - Há uma maneira muito clara de demonstrar meu argumento.

E ao dizer isso, pegou o ovo do chão e, com um golpe de mão, esmagou-o na mão, balançando-a em seguida para livrar-se da sujeira.

- Pois então agora, sem ovo, é impossível o nascimento da -
- O que é isto!?! - cortou um Marx furioso e melecado de gema. - Você, você... me ovou!
- Foi sem querer.
- Sem querer a putaqueopariu, seu desgraçado!
- Ma, ma, que isso é jeito de falar?
- Tá ofendida, bichona?
- Ora seu filho da puta você vai se fuder, ouviu!
- Você é que volte a dar a bunda!
- Pelo menos não vai ser pra minha faxineira!
- Repete, repete se for homem!
- Pessoal, que é isso, vamos pegar leve aí. - Jesus ainda tentou dar uma apaziguada.
- Você e a empregadinha ó, ó, assim. Como é, vai negar? Tá namorando, tá namorando!
- Agora chega, vamos resolver isso duma vez, eu vou arrebentar tua cara, seu sacana!
- Senhores, violência só gera mais violência, aqui é o Céu do Pai e do eterno Bem...
- Marca a hora e o lugar, babaca.
- Meio dia e meia no chafariz.
- Armas?
- De jeito nenhum, eu quero ter o prazer de sentir os ossos da tua cara quebrando debaixo dos meus dedos!
- Pois eu vou arrebentar teus dedos primeiro! E você, aí, jotacê, é contigo mesmo, não se finge de besta não que tu vai tá de juiz!

Breve silêncio antes de Jesus se pronunciar de novo.

- Como é que é...?!
- Eu falei que tu tá de juiz da -
- Comigo? Tu tá falando comigo?
- Hã, é.
- Tu acha que pode chegar assim, apontar e pronto, "tu tá de juiz" e o caralho?
- Mestre...?
- Calaboca, Pedro! O negócio é o seguinte, bicha velha: eu sou o Filho do Homem, tá sabendo? Eu é que sou o maioral dessa porra, eu que sou a Verdade e o Caminho, a Salvação e toda essa merda! Num tá vendo que tem uma grande diferença entre nós dois?!
- Mas -
- Calaboca, Pedro! E tem mais, como você acha que eu aguentei aquela porra daquele tempo todo levando chibatada, prego, coroa de espinho? Condicionamento físico, rapá! Eu com 33 anos de idade quebrava 5 da tua laia só no café da manhã! E tu deve ser tão frouxo que até o Pedro, com a bosta da espada dele -
- Mas mestre! Quem vive pela espada, morre pela espada!
- Ô merda, Pedro, será que você ainda não reparou que JÁ TÁ TODO MUNDO MORTO NESSA PORRA!?!?
- CARALHO GOL DO OBINA! GOL DO OBINA! - soou o vozeirão distante - PUTAQUEOPARIU NÃO ACREDITO, É UM MILAGRE! MEEEEENGO! MEEEENGO!

Moral da história: a filosofia não existe.

10.5.05

Ganhou!

O homem ajeitou uma última vez o turbante alaranjado, que cismava em esvoaçar-se com o vento vindo das janelas escancaradas (fluxo energético, ele justificara). Uma lufada maior quase carregou o baralho, de modos que o sujeito rapidamente colocou uma pedra escura por cima do mesmo.

- Não tem problema? - perguntou Neide, sem saber onde por as mãos.
- Eton todas energissadas, mina cara. - respondeu-lhe em seu sotaque bisonho.
- Ah, então tá.

Meio sem aviso, ele começou a virar as cartas já posicionadas para cima, uma a uma, como se tivesse resolvido pular a ritualística que tanto tinha prezado até o momento que o vento começou a soprar um pouco mais. Ela pensava em criticá-lo por isso um instante antes que o "v" puxado a interrompesse.

- Vvocê etá muto inssegura... preocupada, muta precupaçons po sobe su cabecina... - a imagem estampada na primeira carta, com uma mulher chorando, ameaçada por diversas espadas pendendo do teto, dava-lhe aparente razão em sua interpretação.

- Ai meu Deus, estou mesmo.
- Silêssciô!

Cala-se Neide, enquanto ele virava a carta seguinte, abaixo da primeira.

- Poquê... vvocê dexô pa tás alguéin querido... foi einbora...

Neide faz que sim com a cabeça, lágrimas já quase deixando-lhe os olhos. Na imagem, um homem cabisbaixo segue rumo a uma estrada, deixando para trás oito cálices empilhados numa armação incompleta.

- Mass agora, o futuro tráss... - ele fez suspense enquanto virava a terceira carta, acima das demais; arregala os olhos e, súbito, salta da cadeira - Ganhou!
- Hein?

Na carta, imagem de diversos sacos empilhados, com cifras no lado de fora e notas de dólares saindo pelas aberturas.

- É o arcano um milhão!
- Quê?!
- O arcano que aparece no futuro das pessoas que vão ganhar um milhão de dólares!!
- Como assim!?!

Entram pela janela, voando, inúmeras notas de mil dólares; ouvem-se fogos de artífício pela vizinhança, faixas coloridas de felicitação nas paredes.

- Você tá rica, Neide, rica!
- Rica?!
- Rica!!
- Rica!!! Tô rica!!!
- A magia das cartas! - ele joga notas para o alto em grandes bolos, ela faz o mesmo.
- Um milagre!
- Um milagre do caralho, do caralho!
- Ué, mas e o teu sotaque, guru?
- Calaboca e num reclama porra! E vai pensando nos meus honorários!
- Tá, tá...