20.4.05

Os Oito Copos - Oitavo

- Oi, Fernanda.
- Oi, psor. – ela sentou-se lentamente, e completou. – Fazendo?
- Estou montando uma pirâmide de latas vazias.

Na mesa havia sete latas, quatro na base, três na segunda linha.

- Ah. Emocionante.

A festa vazia era, ela pensava agora, até providencial. Afora Luciana e o próprio Alessandro, não havia ninguém ali com quem ela desejasse trocar notícias do presente ou reviver memórias passadas. Lê, Paulinha e Rétz não vieram, cada um por seus motivos, e até Picles, Zé Ruela ou a velha turma dos nerds ou não haviam chegado, ou não chegariam nunca. Lá estavam, por enquanto, apenas a tal Lara, de quem ela não se recordava de jeito nenhum, e o Pedro, que antigamente brigava horrores com o Rodrigo.

Pra não falar no próprio Rodrigo, é claro.

Tinha pensado horrores nele, ultimamente. Muito mesmo. Tinha a sensação urgente de que aquele reencontro, se acontecesse, aconteceria por algum motivo.

Tinha ligado pra Lê pra saber se ela iria, e ouvi-la novamente despertou uma memória do fim de seu primeiro namoro. Não do momento no qual ele realmente acabou, e sim de quando informou isto a Lê, que acabou sendo a primeira a saber. A reação dela agora era muito nítida em sua memória. Ela disse: “Como você deixou ele terminar contigo assim, sem fazer nada? O namoro de vocês era tão especial, eu não acredito que você vá deixar acabar! Como você vai deixar acabar?”

“Sou muito desapegada”, respondera-lhe Fernanda, à época. Desapegada.

Era de matar de rir.

- Me ajuda aqui? – indagou Alessandro, oferecendo-lhe a lata de cerveja em suas mãos.

Como ela deixou acabar?

- Não deixei. – Fernanda pensou alto.
- O quê?

Ela caiu em si novamente, ao som da pergunta.

- Nada, nada. – respondeu, e pegou a cerveja, mas não bebeu do pouco que restava. Olhou novamente na direção de Rodrigo. – Fessor, desculpa, mas cê me dá licença um instantinho?
- Não vai beber? – ele retrucou, como se fosse a coisa mais importante do mundo.

Ela não ouviu, já caminhava até Rodrigo. Ele a percebeu com antecedência, parecia já esperar por aquilo; por conta própria pediu licença para Pedro e foi ao encontro dela. Usava uma camisa xadrez por fora da calça jeans, um tênis branco, e tinha a cara limpa; não fosse pelo cabelo um pouco mais ralo e o olhar mais maduro, não estava muito diferente do que era 6 anos antes.

- Rod.
- Fê.

Trocaram dois beijinhos, com alguma cerimônia.

- Tudo bom?
- Acho que sim. Você?
- Não sei.
- O de sempre, então.

Ela espantou-se:

- De sempre?
- É, de sempre. Você sempre dizia isso. “Tudo bom?”, “não sei”.
- Dizia?
- Você não lembra?

Balançou a cabeça.

- Não.

Sentaram-se, ela, depois ele, num banco ao lado de um canteiro de flores amareladas; ele, assim que o fez, retomou:

- Então, o que foi?
- O que foi o quê?
- Você levanta do nada e vem falar comigo, tá na cara que você quer falar alguma coisa.

Ela foge com o olhar pra baixo. Ele, fixo-o na lateral do rosto dela.

- Hm.
- Além disso, eu ainda te conheço, Fernanda. O que foi?
- Vai parecer estranho pra caralho eu perguntar isso.
- O quê?
- Rod.

Ela vira-se, fita-o nos olhos.

- Por que a gente terminou?

Agora ele vira-se para a frente, fita o vazio, e ela quem, mantendo o olhar sobre seu rosto, prossegue:

- Cê não parece surpreso de ouvir essa pergunta.
- Não.
- Por quê?
- Eu tenho outra pergunta.
- Quê?
- Quando foi que a gente terminou?
- Como assim?
- Assim, quando foi que a gente terminou. Não lembro.
- Como não lembra? Foi perto da primeira fase do vestibular, na véspera do meu show... você me chamou para passar na sua casa, a gente brigou.
- Nesse dia?! – ele parecia, agora sim, surpreso. – Mas a gente não terminou nesse dia!
- Claro que terminou!
- Não, não terminou! Eu disse que sentia que o nosso namoro não tava mais valendo nada, aí você ficou calada. Disse que se continuasse assim, a gente ia ter que acabar, porque a gente se via de má-vontade, poucas vezes, e não tinha porque continuar se prendendo a um troço desse. E você disse que, na verdade, pra você era como se o nosso namoro já tivesse acabado muito antes, e só continuasse porque a gente ficava insistindo nele.

Era verdade. Ia ressurgindo em sua cabeça praticamente ao mesmo tempo em que ele falava, estivera lá o tempo todo sem que ela pensasse em procurar. E era exatamente o que tinha acontecido.

- Porque achava que ele tinha que ter um final apropriado, uma coisa bem marcante – Fernanda concluiu, bem baixinho – ou que ainda tinha muito pra aproveitar nele.

Ele levou a mão à boca, e começou a arrancar a pele da mesma.

- Você não disse isso, não.
- Não, não, só pensei. E escrevi, acho. Mas e depois?
- Depois, sei lá. Eu achei que a gente tivesse dando um tempo, mas você nunca mais ligou, não falou comigo, e eu pensei “bem, ela decidiu terminar”.

Arrancou um pedaço grande da pele, e deixou escapar uma leve expressão de dor:

- Eu tive muita raiva de você por isso. Por muito tempo. Acho que, se você vem falar comigo antes, eu virava a cara e continuava andando. Nunca achei que você. Sabe.

Olharam-se de novo, e ele completou:

- Tivesse feito isso sem querer.
- Me desculpa.
- Que desculpa, o quê, não é nada.

Ela sorriu, fez-lhe um carinho no cabelo, e abraçou-o com muita força, num abraço bem demorado, ao final do qual ela levantou-se e ele, finalmente reparando na lata de cerveja, perguntou:

- Dá um gole?
- Tem bem pouquinho. – responde Fernanda, passando-lhe a lata.

Rodrigo nem bem encostou os dedos, devolve-a.

- Nossa, tá quente, que horrível, joga isso fora.
- Vou devolver, essa latinha tem dono.
- Ah, é? E depois? Você não tá com cara de que vai ficar por aqui.
- Não.
- Vai pra onde?
- Pra um show, fazer uma surpresa boba.
- É, eu também não me demoro muito. É uma pena que a festa teja assim vazia, eu queria mesmo ter revisto o pessoal... e tadinha da Lú.
- É, mesmo. – pegou a lata de volta. – Dá um beijo nela pra mim?
- Dou. E beijo pra você também... não some, não.

Trocaram beijinhos nas bochechas novamente, mais um abraço, menor desta vez.

- Não, mesmo, eu ainda tenho uma puta saudade de você, Rod. Mas tu tá no meu orkut, não?
- De todo rumo eu tô na lista.
- Então, té mais.

Ela retornou para o salão, onde Alessandro observava, impassível, de mãos vazias. Sem dizer palavra, colocou a lata que tinha em mãos como início da terceira fileira, e assim que o fez, o outro cortou o silêncio.

- Você não bebeu.

Ela deu de ombros, aproximou-se e deu-lhe um beijo na bochecha.

- Tô indo, já, psor. Desculpa não falar direito, fica pra próxima.
- É uma pirâmide de quatro por quatro por um.
- Hein?
- Ainda faltam duas latas.
- Por mim, podem ficar faltando. Té mais, vê se não some!

E dizendo isso, Fernanda virou-se de costas. Sem sorrir profundamente, com passos até pouco vigorosos, e um pouco cabisbaixa, refletindo nas poucas palavras ali trocadas, no muito que significavam. Mas virou-se.

E foi embora.


19.4.05

Os Oito Copos - Sétimo

- Não, não, de jeito nenhum! – respondeu Rodrigo, cambaleando ligeiramente para trás. – Eu já misturei o vinho com caipirinha, se eu bebo mais uma lat – voltou-se para trás depois que percebeu estar pisoteando a tal Lara, de quem Fernanda não conseguira em absoluto se lembrar, ao rever – Opa, desculpa. Desculpa mesmo!

Fernanda riu bastante, não conseguia evitar. Ainda não tinha álcool suficiente no sangue para livrar-se do terrível fardo da consciência: ela permanecia ali, no canto de seu eu, como uma rainha testemunhando impotente um golpe de Estado. Seu tato acusou esbarrões em pelo menos três direções diferentes, mas o aviso chegou tarde demais para que qualquer providência a respeito fosse tomada.

Uma voz masculina, possivelmente Rétz, lhe disse qualquer coisa incompreensível – para a tirania do álcool, ao menos – mas passou rápido o bastante para que ela nem se incomodasse em virar.

- E você? – seguiu Rodrigo – Não vai na caipivodka, não?

Fernanda ri de novo. A pista cheia não lhe impedia os movimentos espalhafatosos; na verdade, de certa forma a incentivavam. A festa, um sucesso de público, chegava exatamente então a seu ponto mais alto, e as vozes e o barulho eram uma incitação irresistível ao estardalhaço.

- Tá maluco, menino?! Quer que eu pare na glicose hoje?

Ele esticou o pescoço do jeito que costumava fazer quando ia dizer alguma sacanagem no seu ouvido, mas voltou balançando no meio do caminho, deu uma disfarçada absolutamente fracassada e ensaiou alguns passos. Rodrigo era um péssimo dançarino. Não por deselegância, por timidez, mesmo. Até bêbado. Fazia muito que ela não o via em uma danceteria ou em qualquer coisa parecida com uma.

Reencontraram-se num bar da orla, já devia ter um ano – sim, mais ou menos isso, mesmo. O longo tempo de sumiço e as boas lembranças renderam-lhes algumas horas de uma conversa de intimidade estranhamente baixa, e a promessa de fazê-lo novamente em uma semana. Eram dias frustrantes, que precederam a reprovação por desistência dela no projeto final, e do abandono do curso de desenho industrial dele; mas muito pior que isso, era um momento em que todos os bons amigos de ambos ou mostravam-se não tão bons, ou pouco disponíveis – boa parte deles, devido a comprometimentos amorosos.

Viram-se, então, de novo e, como ela deveria esperar, ele ousou um pouco mais, aproximou-se durante a fala, fez um carinho em seu rosto. Mais ou menos no ponto em que ele pegou em sua mão, ela lhe respondia porque acreditava que se deixava voltar a vê-lo. O próprio Rodrigo lhe perguntara. Disse qualquer coisa previsível como “você não continuou pensando em mim nesse tempo, não sentiu minha falta?” e ela respondeu, muito sinceramente, que era claro que sentia, mas não tanto, sentia mais mesmo agora, porque se sentia – foi exatamente nesse ponto que ele pegou em sua mão, e a voz dela quase desapareceu – tão sozinha. E ele respondeu “eu também”, recostou-se sobre ela e a beijou; então pediram a conta, foram para a casa dele, e treparam como não faziam há muito tempo.

Continuaram curando mutuamente sua solidão assim, de quando em quando. Viam-se, narravam seu dia-a-dia um ao outro, bebiam (ou não), fodiam (ou não), iam embora para suas respectivas casas. Eram companheiros em seus excessos de saídas, álcool e noites mal-dormidas, companheiros ao narrar suas vidas diurnas um ao outro e constatar que tudo dava errado. Rodrigo deixou escapar a palavra namoro uma vez, enquanto Fernanda encostava-se em seu peito. “Namoro?”, ela se indagou. Bem, eles se viam com freqüência, e se beijavam e compartilhavam da intimidade um do outro.

Ele não a beijava agora na pista, no meio da festa de reencontro da escola, Fernanda tinha certeza, era porque também se perguntava a mesma coisa, também sentia que aquilo, embora parecesse um namoro por todos os critérios válidos, era como o prazer que se tem de comer um prato frio quando com muita fome, de um mijo após horas de contração.

- Vou pegar mais bebida! – gritou-lhe Rodrigo ao ouvido.
- Tá bom! – respondeu. – Eu vou sentar em algum canto. Me traz uma uva?
- Quê?!
- Uma uva!... Deixa pra lá.
- Trago! Se tiver!

Rodrigo rumou para a cozinha, e Fernanda voltou-se para o grande conjunto de cadeiras cheias do outro lado. Turmas grandes se avolumavam. A velha gangue dos nerds comparecera em peso e, somando-se amigos convidados, namoradas e afins, enchia 20 lugares do canto direito numa mesa volumosa. Letícia, Picles, Zé Ruela, e uns três desconhecidos sentavam-se em outra, companhia demais para seu gosto. Luciana e o irmão, pelo visto não se viam há muito, no fundo, ao centro; nada que ela gostaria de atrapalhar. Procurou por Paulinha e o namorado, mas aparentemente tinham sumido, como era costume nos momentos em que ela precisava da companhia de amigos, ainda que de um casal.

E no canto oposto estava Alessandro, seu antigo professor de História, que ela jamais imaginaria presente, sentado de costas para a parede, uma lata de cerveja na mão. Ele tentou, enquanto a fitava, o melhor que pôde, sorrir, mas sua expressão cabisbaixa acabou por alterar-se pouco.

Vendo o lugar vazio ao lado dele, foi para lá se sentar.

- Oi, Fernanda. – disse-lhe Alessandro.
- Oi, e aí. – sentou-se. – Fazendo o quê sozinho no meio desse povo todo?
- Estou montando uma pirâmide de latas de cerveja vazias.

Na mesa, havia seis latas vazias, quatro na base, duas na segunda fileira.

- Seu bêbado. – ela sorriu.
- Me ajuda aqui?

Ele lhe estendeu a lata em suas mãos, que tinha apenas uns poucos goles sobrando; ela despejou o conteúdo garganta abaixo e depositou o recipiente vazio no pano azul da mesa.

- Tá fria ainda, você bebe rápido. – comentou ela. – Essa já é da leva que o Patrick foi apanhar agora?
- O irmão da Luciana?
- Ele mesmo.
- Sabe, ele foi um grande amigo meu, tempos atrás. Eu vinha muito aqui.
- É, ele me contou. Disse que você sempre se escondia dele na lixeira entre o play e o segundo andar, bem encolhidinho.
- Lá dentro. – sorriu Alessandro, e aquilo parecia ser algo tão diferente, como se seu sorriso naquele momento alterasse mesmo alguma lei do comportamento humano.
- Ele disse também que esse play não mudou nadinha desde que vocês eram crianças.
- Mudou. Acho que tudo sempre muda, só eu continuo igual.
- Você acha mesmo isso?

Ele não respondeu; deu sumiço no próprio sorriso e voltou a fitar o mesmo ponto difuso da festa.

- O mundo não é imutável só em você, sabe, nem tão limitado. Olha só essa festa, o melhor exemplo prático. De quantos jeitos você acha que ela não podia ter acontecido? Quantas histórias diferentes essas pessoas aqui não trouxeram e poderiam ter trazido?

Alessandro nada ainda, fazia cara de incomodado com a bebedeira dela.

- A Paulinha hoje, tá namorando o Daniel, beleza, mas você viu como o Rétz passou por ela sem nem falar nada? Eles podiam muito bem tá namorando ainda. O Rétz também podia tá todo certinho, ou podia tá mais loucão ainda, ele quase fez teatro, sabia? Aliás, eu durante um tempo achei que ele fosse gay. Aí eu achei que ele gostava de Lê. Aí eles dois sumiram, e Luciana sumiu... ela continua muito patricinha, mas podia não ter continuado, podia ter endoidado, mudado totalmente. Podia tá discotecando agora. A Lê podia tá discotecando. Acho que ela gostava do Rodrigo, ela mesmo podia tá com o Rodrigo agora, e não.

Deteve-se assim que percebeu o que dizia. Alessandro, sem virar o rosto, respondeu-lhe:

- Fernanda, até eu consigo dizer o que você quer me perguntar.
- Não consegue, não!
- Sim.
- Você acha que entende tudo que aconteceu entre a gente só porque viu desde o começo, mas você não sabe de nada, você não sabe o que tá acontecendo, não sabe o que vai acontecer. Você acha que sabe o que vai acontecer, fica sempre tentando adivinhar, porque acha que só uma coisa pode acontecer, mas quer saber? Isso é babaquice sua! Pode acontecer uma caralhada de coisa. Amanhã o Rodrigo pode vir e me pedir em casamento, e pode ser que eu aceite, e pegue o emprego no Ministério da Cultura que a minha mãe vive enchendo o saco pra eu pegar. E tenha uma vida comum e feliz. Ou que eu dê um pé na bunda dele, e mande ele me largar, e nunca mais veja ele, pense nele, e diga pra ele que, se tem uma coisa que eu consegui perceber, é que ele não é o homem da minha vida, que a gente não tem como dar certo, isso é só uma enrolação.
- Não.
- Não o quê?

Nada, de novo. Alessandro mexeu levemente o braço esquerdo, mas desta vez Fernanda pôde sentir, na maneira como o fazia, inquietação.

- Você acha que eu não consigo fazer isso. E deve ter razão, porque eu não consigo fazer nada, eu não consigo fazer nada que eu queria da minha vida. Nem com o Rod nem com ninguém. E você tá errado quando diz que só você não muda, porque eu também não mudei, nem eu nem o Rod, eu. Não consigo largar isso, não consigo largar nada, não sei pra onde ir se largar.
- Você não veria nem que estivesse do seu lado.

A inquietação se refletia nele agora de maneira mais clara, e, mesmo com a percepção embotada, Fernanda sabia que ele queria se levantar – mas não o faria.

- Mas isso não vai durar pra sempre não, fessor. Um dia você também vai mudar. Pode dizer que é papo de bêbado. Mas um dia, assim do nada, eu vou conhecer e me apaixonar por uma outra pessoa, acho que alguém uns seis anos mais novo, assim, só pra eu morder bem a língua, e vou parar de usar esses suspensórios e vou fazer uma música diversificada, e vou ser contratada pra fazer a trilha sonora de um jogo japonês de criação de cachorros. Espaciais. E vou viajar pelo mundo e virar taoísta, e vou ajudar um bando de religiosos a lutar contra a tríade em Hong Kong. E vou aprender a ler o futuro no I Ching, e nem vou precisar estar bêbada! E você.

Alessandro virou-se para encará-la, pela primeira vez durante toda a conversa; ela continuou:

- Você vai acordar um dia com um bilhete na porta da sua casa dizendo que você não se lembra do que fez no dia anterior, e não vai se lembrar mesmo. E você vai conhecer um sujeito chamado Gaio com uns cachorros que diz que é Deus, e conhecer uma língua secreta que altera ondas elétricas. Aí vai ser perseguido por uma organização para-militar que implantou chips em sua cabeça, e vai se apaixonar de novo por uma moça que se chama Helena mas se chama Andréia, e ter que fazer um ritual de sacrifício a Hades pra impedir que E.T.s invadam a Terra, e se oferecer e dar um tiro na própria testa.

Olhou para ele e abriu um sorriso largo.

- E aí, gostou da minha previsão? Não vai dizer nada?

Nada.

- Diz alguma coisa, Alessandro. Você não vai falar mais nada, isso é tudo que você tinha pra me dizer? Alessandro!?

18.4.05

Os Oito Copos - Sexto

- Nossa, que música é essa? – riu Luciana, deixando-se cair mais um pouco na cadeira, enquanto ouvia os bipes ritmados do telefone celular da amiga.
- É o Jorge, ele que pôs. – respondeu Fernanda. – Não sei de onde é.
- Jorge?

Fernanda olhou rapidamente para o visor do aparelho, apertou um botão e pôs-se a guardá-lo de volta na bolsa.

- Ué? Não vai atender?
- Depois eu ligo pra ele.
- Ih, meu deus, já tá assim?
- Não, não, ele é um amor, mas.
- Mas?
- Muito bobinho, às vezes.
- Mais do que você?
- Ele é novinho.

Luciana abriu um sorriso e esticou os braços pra fora da manga larga da blusa rosada.

- Ora, ora, ora, ora!
- Ai, saco...
- Ai saco não, ai saco não! Quer dizer que eu esperei oito anos para ver dona Fernanda Dantas Nogueira se tornar a maior mordedora de língua da face da Terra?!?
- Lú!
- Lú não, minha filha, Lú, não!
- Olha.
- Quantos anos?
- Dezs...
- Não ouvi! Quantos?
- Dezessete, porra! Tá bom?!

Luciana cai na gargalhada.

- Ah, se eu soubesse disso na época que fiquei com o Beto! Ah, se eu soubesse!
- Lú, eu era novinha e idiota, pelamordedeus.
- E ele? É idiota?
- Não. Bobinho só.
- Sei.

Deu uma olhada na amiga de cima a baixo.

- Cê mudou, Fê.
- Não, você é que mudou. Eu tô igualzinha.
- E paquerando um moleque de 17?
- Então. Igualzinha.
- Mas eu não penso em você assim, com esse suspensório, isso não é a Fernanda que eu conheci. Eu lembro de você de cabelo comprido e arco cor-de-rosa.
- E eu lembro de você sem esse piercing no nariz. Nem esse sotaque de gringo com ovo na boca.
- Eu não peguei sotaque!
- “Ieu non peiguei sutáqui!”

Risos.

- Sua piranha.
- Vadia.
- Quer uma cerveja?
- Pode ser.
- Vou lá pegar.

Luciana levantou-se e rumou para a cozinha, e Fernanda se pegou varrendo o salão de festas e a parte visível do play com os olhos. Em frente à porta da cozinha Picles, sua namorada, cujo nome ela desconhecia (entrara muda e provavelmente sairia calada), Paulinha, a tal Lara, de quem ela mal se lembrava, e o Lucas “lata velha”, travavam uma conversa animada entrecortada por muitos risos; afastaram-se um pouco para deixar Lú passar, mas de resto seguiram como se nada tivesse acontecido. Lê terminava de organizar a lista de mp3 que tocariam ao longo da festa em seu laptop, e voltava a dar as mãos a Mateus, da velha turma de nerds da sala. Rétz dançava na pista com Rita, que na época da escola mal falava, e aparecera com o cabelo verde e um vestido rosa-choque, e um outro garoto novinho que devia ser calouro de alguém. Faziam aquilo para chamar a atenção, mesmo; nisso o Rétz não mudava.

Rodrigo tinha vindo com um primo, ao lado de quem observava tudo, de fora do salão. Passara a maior parte do tempo conversando com ele daquela maneira familiar na qual simplesmente não se consegue parar de ligar um assunto ao outro, e dificilmente permitir a entrada de um novo interlocutor; coisa de quem não se vê há tempos, mas descobre-se ainda cheio de particularidades em comum. Tinha o rosto limpo, branco de falta de sol, os cabelos bem curtinhos, e vestia uma camiseta branca lisa, assim. Não parecia nem muito que tinha saído de casa.

Rétz contara-lhe que Rodrigo criara um programa de geração de sabe-deus-o-quê operacional durante sua temporada nos EUA, que lhe valera uma fortuna. Aparentemente era estupidamente famoso no meio. Agora trabalhava em casa por vídeo-conferências, faxes e e-mails, com folga, resolvendo como investir o seu dinheiro, mas na verdade ninguém nem soube dizer se pretendia continuar por aqui, se estava de passagem – talvez ele mesmo não soubesse.

Rodrigo desviou o olhar do primo por um instante, e num movimento – ao menos aparentemente – desproposital, cruzou os olhos com os dela, que rapidamente jogou os seus rumo a um canto a princípio vazio do salão. A princípio.

Pois lá estava Alessandro, seu antigo professor de História, que ela jamais imaginaria estar presente, sentado de costas para a parede, olhando para ela, com o celular ligado e aceso em sua mão. Ele tentou, enquanto a fitava, o melhor que pôde, sorrir, mas sua expressão cabisbaixa acabou por alterar-se pouco.

Ela sorriu de volta, e, meio sem perceber, levantou-se e foi lá falar com ele.

- Oi, Fernanda.
- Olá, senhor Alessandro. – fez um pouco de tom de brincadeira. – Posso saber o que você está fazendo aqui?
- Estou montando uma pirâmide de latas de cerveja vazias.

Na mesa havia 5 latas vazias, 4 na base, uma iniciando a segunda parte.

- Nossa, você já sabe até quantas vai beber!
- Me ajuda aqui? – perguntou Alessandro.

Ele lhe estendeu a lata em suas mãos, que tinha apenas uns poucos goles sobrando; ela despejou o conteúdo garganta abaixo e depositou o recipiente vazio no pano azul da mesa.

- Na verdade – retomou, enxugando a boca com as costas da mão – o que eu queria saber era com quem você tava falando?

Como resposta, Alessandro apenas mostrou-lhe o visor do celular, onde se lia o conteúdo de um torpedo de cerca de um minuto e meio antes:

“Pisandro, seu mongol! Eu tô em sampa. Dê um beijo na boba da minha irmã por mim! – Patrick.”

- Patrick?! – ela arregalou os olhos, enquanto devolvia-lhe o celular. – Você conhece ele?
- O irmão da Luciana? Sabe, ele foi um grande amigo meu, tempos atrás. Eu vinha muito aqui.
- Bem, a Lú foi só pegar uma cerva pra gente, mas deve tá muito cheio lá –
- Lá dentro.
- É.

Fernanda brincou um pouco com a lata vazia.

- Eu nem sabia que a Lú tava morando na Inglaterra, ainda mais que o Patrick tinha mudado.
- Mudou. Acho que tudo sempre muda, só eu continuo igual.
- Acho que nem tudo não, nem tudo.

Lançou um olhar para fora do salão, onde Rodrigo conversava com seu primo.

- Você não acha que o Rod. Eu sei que ele tá diferente. Mas o jeito como ele de vez em quando me olha ainda é o mesmo daquela primeira festa aqui. É, né, como é que –
- Fernanda, até eu consigo dizer o que você quer me perguntar.
- Então, não parece?
- Sim.
- Deve ser muita burrice achar que a gente ainda podia dar certo. Depois de tanto tempo. A gente tinha uma coisa tão boa e eu. Eu não sabia como ia ser a vida sem encontrar ele e jogar o jogo do dedão, ele não comendo feijão, deixando comida no prato. Caralho, eu odiava isso, eu odeio gente que come porcaria. E ele reclamando que eu demorava nos shows? Você sabe que ele fazia isso? Reclamava da gente começar atrasado. Todo mundo começa show atrasado. Eu nem sei se tocaria se não fosse por ele, eu fiz a minha segunda música pra ele. Acho que ele nem sabe.

Suspiro.

- Eu sou uma idiota.
- Não.
- Eu. Eu falaria com ele agora, eu quero mesmo falar, mas não sei o que, nem sei como começar. Tô com essa sensação de que a nossa história ainda não terminou, sabe? Tô tentando entender, fico lembrando das coisas. Mas imagina, eu nem ia saber como puxar assunto. Se eu tivesse uma idéia...
- Você não veria nem que estivesse do seu lado.
- Fê! – a voz de Luciana chegou baixa da outra ponta do salão; ela trazia não 2, mas 3 latas.

Fernanda trocou com Alessandro olhares de compreensão súbita, e dirigiu-se na direção da amiga para interceptá-la. Tomou-lhe as duas latas da mão direita e, seguindo rumo à porta, puxou-a com a outra.

- Fê?! Que é isso?

Soltou-lhe a mão.

- Olha, desculpa, isso é uma coisa que eu tenho que fazer. Cê é minha amiga desda 3ª série, me ajuda?
- Como assim?

Fernanda voltou a andar, e Luciana compreendeu para onde estava sendo levada.

- Você quer falar com o Rod? Fê –
- É burrice, né? Eu sei que é burrice, mas é só que. A gente se fode tanto na vida, eu acho que pode ser que eu não goste de falar com ele de novo, mas nem ligo mais, a gente depois de um tempo –
- Fê!
- Quê?
- Era só pedir que eu ia. – sorriu. – Mas essa cerveja era pro Alessandro.
- Ah, ele vai entender.

Foram. Rodrigo demorou a perceber que se aproximavam; ao ser avisado pelo primo e virar-se, quase deu um salto pra trás.

- Oi Rod.
- Oi, Fêe – ele alongou o ê, claramente se evadindo da intimidade do apelido –eernanda. Oi, Luciana.

Mostrou a ele a lata.

- Quer uma cerveja?

17.4.05

Os Oito Copos - Quinto

Andou com passos rápidos até a beira da piscina, onde estavam os dois casais. Eles compartilhavam uma mesma mesa redonda e conversavam animadamente – dera sorte, pensou, e aproximou-se deles vestindo seu melhor sorriso, sendo recebida da mesma forma.

Como ela mostrou dúvida sobre aonde se sentar, o próprio Rodrigo levantou-se e apanhou uma cadeira próxima, colocando-a entre si e Paula e oferecendo o lugar a Fernanda, que, deixando escapar um cisco de aflição pelo olhar, acabou aceitando.

Fizeram, em vão, o melhor que podiam para deixá-la à vontade: perguntaram-lhe sobre sua vida, pediram sua opinião nos assuntos, buscaram lembranças em comum da escola. Falha na inserção social consumada, desistiram e retomaram seus assuntos casuais – festa de amigos em comum, show de bandas preferidas, último cinema, concurso público, a rotina peculiar do escritório de publicidade onde Rétz estagiava, com todas suas loucuras e apelidos estranhos, professores babacas de Letícia e Rodrigo (que eram colegas de turma na engenharia).

- Porra, é um velho tarado, aquele filho da puta! – ele xingava, por sobre as altas gargalhadas do restante da mesa.
- Nada, Rod, ele é é gay, já disse pra você, tá na cara que é. – interrompeu Letícia.
- Gay porra nenhuma. O jeito como ele te olha!
- Já te disse que naquele dia ele tava reparando na minha saia.
- Na saia! – Rétz explodiu em gargalhadas.
- Ele veio comentar comigo depois! – protestou Letícia.

Eles até chamaram o Mateus, um dos integrantes da velha turma dos nerds da sala, pra promover a integração da mesa – quem sabe, talvez, fazendo melhor companhia à Fernanda. Ele parecia freqüentar círculos sociais semelhantes aos dos outros 4 e, de fato, rapidamente pôde se inserir na conversa, conseguindo até arrancar algumas frases e sorrisos dela.

Rodrigo chegou a comentar como ela estava diferente, e todos concordaram, Paulinha acrescentando que a Fernanda que conhecera ria o tempo todo. Mas a própria sabia que ainda ria muito normalmente, que não era ela que tinha mudado – muito pelo contrário. Eles é que tinham mudado.

Talvez em algum momento ela tivesse se deixado enganar, pensando que o fato de eles terem mantido contato entre si, e com os demais colegas de colégio, os mantivesse apegados àquele estado anterior de coisas, àquele tempo. Mas estaria errada. Eles tinham mudado tremendamente, e aqueles não eram o Rétz, nem a Lê, a Paulinha, ou o Rod, caramba, nem mesmo o Mateus que ela conhecera no segundo grau (o Mateus que ela conhecera cagaria nas calças de vergonha antes de conseguir contar uma piada a uma garota).

- Como, qual espinha? – a voz de seu antigo namorado cortou-lhe os pensamentos. – Essa aqui!? – completou, e com um grande estalo, espalmou a mão esquerda na coxa direita de Letícia.
- Ai! – ela reagiu. – Isso doeu, porra, Rod! Doeu pra –

Um beijo de Rodrigo a interrompeu. E prosseguiu por mais tempo do que o silêncio que surgiu com ele, acompanhado depois pela conversa amigável dos outros três ocupantes da mesa de plástico, que em tudo o ignoravam. Uma Fernanda muda observava, e em parte sentia-se satisfeita, em parte surpresa, de ver que seu ex não saiu rapidamente do beijo para um sussurro ao pé do ouvido, como fazia antigamente. Pôde suportar a cena somente até o momento em que Rétz e Paulinha decidiram acompanhar o casal de amigos com outro beijo; então se levantou e retornou para o salão de festas, sem que os quatro reparassem.

No caminho pensou que talvez devesse ter sido no mínimo um pouco menos rude com Mateus, que chegou a tentar falar alguma coisa pouco antes dela se levantar; mas voltando-se na direção dele, que agora a seguia ao longe, irritou-a pensar que ele provavelmente só queria aproveitar o momento para abordá-la, formando um novo casal. Ele a fitou de relance uma última vez e mudou de rumo, praticamente fugiu. Foi então que ela levou as mãos ao rosto, e percebeu nele as contrações que costumam levar ao choro.

Aquilo a perturbou profundamente.

Ela seguiu rente até a parede do canto assim que percebeu a presença de Luciana, conversando com um homem sorridente de rosto sardento. Não queria conversa com ninguém. Sentou-se o mais de frente para a parede que podia, tentando barrar a passagem das lágrimas, equilibrar a respiração. Repetiu à exaustão o mantra “merda”, até sentir as primeiras gotas escaparem por entre as pálpebras; então perdeu o controle dos soluços, que saíram saltitando por sua garganta feito sapos. A irritação virou fúria, e resolveu tentar, por conta própria, deter tudo com um murro vigoroso em uma das inocentes mesinhas estacionadas ao lado.

A música alta abafou o estalar e tremer do plástico, que se fez acompanhar imediatamente do ruído mais leve da queda de alumínio, e do despejar de líquido borbulhante; mas ela não teria levantado os olhos para ver do que se tratava, se uma voz não se sobressaísse no meio de tudo.

- Oi, Fernanda.

Alessandro, seu antigo professor de História, que ela jamais imaginaria estar presente, sentava-se de costas para a parede. Ele tentou, enquanto a fitava, o melhor que pôde, sorrir, mas sua expressão cabisbaixa acabou por alterar-se pouco.

- Fe. Fessor? Ai meu deus, me desculpa, eu. Não tinha visto você aqui no canto, eu não queria atrapalhar, é. – a lucidez retornava aos poucos, embora as lágrimas ainda lhe turvassem muito a vista. – O quê. O quê você tá fazendo aqui sozinho?
- Estou montando uma pirâmide de latas de cerveja vazias.

Na mesa, duas latas permaneciam em pé, outras três na horizontal, uma quieta e vazia, uma rolando na direção da parede, e a última deitada, estática, vazando um bom bocado de seu conteúdo.

- Me ajuda aqui? – perguntou Alessandro, secando o líquido com um guardanapo. Fernanda rapidamente pegou outro e ajoelhou-se para tentar limpar o chão, para onde o líquido também se esvaíra.
- Ai, me desculpa, puta que o pariu, desculpa mesmo!

Do outro lado, o rapaz de rosto sardento andou na direção deles, sendo prontamente interrompido por um gesto amenizador de Alessandro, e retornando para de onde veio.

- Eu não sujei você, sujei?

Sujara, mas ele nada disse a respeito; apenas jogou os guardanapos úmidos no lixo mais próximo e aprumou-se de volta na cadeira, deixando as latas como estavam.

Fernanda ficou ali alguns instantes olhando-as, qualquer espécie de força invisível que os olhos de Alessandro emitiam impedindo-a de colocá-las de pé novamente. Até levantou a mão esquerda com essa intenção, mas deteve-se e acabou apenas se apoiando na mesa com ela, enquanto discretamente enxugava o rosto com a direita, tentando aliviar o desconforto com uma pergunta:

- Você conhece o Patrick?
- O irmão da Luciana?
- É.
- Sabe, ele foi um grande amigo meu, tempos atrás. Eu vinha muito aqui.
- Eles já saíram? Tô morta de vergonha. Onde eles tão? – olhou ao redor.
- Lá dentro.
- Mas a cozinha não era pra cá? Mudou de lugar?
- Mudou. Acho que tudo sempre muda, só eu continuo igual.
- Não. Eu também continuo. Eu também.

Alessandro, ela teve impressão, pareceu esboçar um gesto em sua direção, talvez pensando em passar-lhe a mão pela cabeça ou qualquer outro carinho de cunho semelhante. Mas devia ter sido impressão.

- Você não acha que. Caralho. – ela se esforçou para passar por cima dos soluços. – Você sabe a história toda, psor. Eu. Eu perdi ele, mas.
- Fernanda, até eu consigo dizer o que você quer me perguntar.
- A gente pensa igualzinho, né? – esboçou um sorriso.
- Sim.
- Não podia ter sido de outro jeito. Já faz tanto tempo, eu não achei que ainda me importasse. Eu não tenho –
- Não.
- Não tenho culpa. Eu perdi ele, mas.

Voltou a chorar. Aconteceu bem mais rápido, dessa vez; faltaram-lhe forças para resistir, talvez porque já tivessem sido gastas antes. E agora ela desejava mesmo que Alessandro estivesse lhe passando a mão pela cabeça e lhe fazendo qualquer carinho daquele tipo, ou qualquer um. Queria ela mesma procurar recostar-se nele, e o teria feito se a mesa não a impedisse.

- Perdi ele, pra sempre.

Em lugar disso, esmurrou a mesa novamente, e de novo e de novo, até que três das cinco latas despencassem ao chão.

- Onde é que eu vou achar ele de novo? – cessou os murros.
- Você não veria nem que estivesse do seu lado. – respondeu Alessandro.

E o celular dela tocou.

16.4.05

Os Oito Copos - Quarto

- Professor!

Fernanda tinha se sentado há poucos minutos numa das mesas de plástico do salão de festas quando a mão de Alessandro, seu antigo professor de História, que ela jamais imaginaria estar presente, a tocou no ombro. Só então reparou que ele tinha estado o tempo todo a pouco mais de uma mesa de distância, bebendo uma lata de cerveja, sentado de costas para a parede.

- Oi, Fernanda. – ele tentou, o melhor que pôde, sorrir, mas sua expressão cabisbaixa acabou por alterar-se pouco.
- Puta merda, cê me deu um susto! – parou e observou-o. – Aliás, que cê tá fazendo aqui parado no canto?
- Estou montando uma pirâmide de latas de cerveja vazias.

Na mesa havia 3 latas vazias.

- Bem, você já tem a base. – ela riu, decepcionando-se em ver que ele não ria de volta.
- Me ajuda aqui? – perguntou Alessandro.

Ele lhe estendeu a lata em suas mãos, que tinha apenas uns poucos goles sobrando; ela despejou o conteúdo garganta abaixo e depositou o recipiente vazio no pano azul da mesa.

Houve um breve silêncio antes que Fernanda decidisse externar seus pensamentos:

- Professor, você ainda mantém contato com seus amigos antigos? Tipo o –
- O irmão da Luciana? Sabe, ele foi um grande amigo meu, tempos atrás. Eu vinha muito aqui.
- É, o Patrick! O que houve com ele, se mudou, né?
- Mudou. Acho que tudo sempre muda, só eu continuo igual.
- Não, eu mudei. Acho que mudei. Não é como, assim, uma coisa que eu fiz por querer, eu sinto quase como se tivesse sido jogada de um lado pro outro. Mas ao mesmo tempo, eu sinto que fiz de propósito isso, me afastei dessa vida do colégio, dos meus amigos da época. Eu. Essa sensação que fica me impregnando na cabeça.
- Lá dentro.
- Você também não... Como se pode dizer? Eu não quero me intrometer.
- Fernanda, até eu consigo dizer o que você quer me perguntar.
- Então. É isso, né? Desculpa dizer assim, mas. Você também se sente assim, também se afastou dos seus amigos, da época.
- Sim.
- A gente é parecido, né. Não só nisso. Não parece, mas é.

Paulinha passou com mais uma cerveja, que Fernanda polidamente aceitou, sem dizer nada. Sua amiga mostrou-se meio decepcionada, mas seguiu de volta para junto dos demais. Ela e Letícia aparentemente ainda eram unha e carne, e ainda viam muito Luciana, que era colega de curso da primeira na arquitetura da Puc. Fernanda chegou a participar de um princípio de conversa entre as três, antes de sentar-se ao lado de Alessandro; sentiu-se abissalmente excluída e abandonou-as rapidamente com uma desculpa tola. Afora isso, conversara rapidamente com Rétz, tendo ficado logo sem assunto e sendo pouco discretamente abandonada pela conversa com um dos antigos nerds, que agora, como o próprio Rétz, lidava com teatro – eram, pensava, ambos um pouco cheios de si demais para renderem uma conversa realmente interessante. Mas era um pouco mais que isso. Ela simplesmente não se importava com o que ele, ou qualquer um ali, fazia ou deixava de fazer.

- Sabe como eu me sinto? – tornou a falar. – Às vezes, é como se eu só tivesse vendo a vida passar, sentada na frente de uma tela ou sozinha num ônibus, num trem. Eu fico olhando, as pessoas entram, as pessoas saem, parece. Você já viu Evangelion? Um desenho japonês, sabe?
- Não.
- É que tem um personagem que. Ah, deixa pra lá.

Tomou um gole da cerveja antes de voltar a falar.

- Teve motivo pra isso? Você? Quero dizer, nós dois, quero dizer.
- Você não veria nem que estivesse do seu lado. – concluiu Alessandro, e apontou com a cabeça na direção de Rodrigo.

Foi como um estalo. Rodrigo conversava com uma garota cujo nome Fernanda não recordava, que tinha levado o filho de um ano e pouco à festa, mas na verdade uma grande roda havia se formado em torno deles – e ele eventualmente trocou ao menos algumas palavras com cada um, era amigo de cada um, mantinha contato com cada um. Ele ajeitava os cabelos longos e comentava sobre o mestrado que principiava a cursar em filosofia.

Ocorreu a ela que nunca, ao longo dos dois anos de seu primeiro namoro, haviam tido sequer uma briga. Mais adiante aconteceria com mais freqüência o oposto, mas não com Rodrigo; com ele nunca havia brigado, nunca conseguira brigar, mesmo nos piores momentos. Nem quando ele a deixou plantada esperando por uma hora e meia na porta do Empório, nem quando ele já entrou em seu quarto berrando com raiva e ciúme do Lelo, ou quando deram um tempo por conta das cartas da Elisa, até mesmo no dia em que terminaram, a resposta dela variou apenas de um sorriso otimista a um leve biquinho de resignação.

Agora lembrava nitidamente do dia em que terminaram. Foi perto da primeira fase do vestibular e na véspera de um show, e ele a chamou para passar na sua casa. Ele a chamou. Nem se deu ao trabalho de ir até ela. E a recebeu com um beijo, para meia hora depois conduzi-la até a porta. Ela não chorou, não comentou, meio que já pressentia. Não era que não sentisse nada. Pelo contrário, por dentro explodia de raiva, decepção, ciúme; e mais tarde, com outros, também sentiu, e brigou, chorou, gritou. Mas desde aquela época, sentia-se anestesiada. E agora já imaginava o porquê.

Tinha falhado miseravelmente em fugir dele durante oito longos anos. Pois o que lhe parecia é que a fuga era necessariamente para os braços de outro. Mas nada era assim tão simples, e na verdade nem poderia ser assim tão fuga. Os passos deveriam ser determinados, não rápidos, e somente seus.

Tomou um gole grande da cerveja e levantou-se da cadeira.

15.4.05

Os Oito Copos - Terceiro

- Um brinde! – Rétz berrou, levantou a lata de cerveja.
- Caralho, outro? – interrompeu Letícia, que apesar da expressão de tédio, divertia-se muito vendo o velho amigo.
- Ao quê, dessa vez, Rétz? – perguntou Fernanda.

Ele se pôs de pé, sorrindo afetado, depois voltando à expressão séria antes de proclamar:

- A velhos amigos!
- De novo. – lamentou Letícia; mas levantou-se junto da outra e brindaram assim mesmo.

Sentaram-se; Rétz ajeitou o brinco na orelha esquerda enquanto o fazia. Súbito, esbugalhou os olhos e puxou Fernanda pelo braço.

- Ih, menina! Olha quem tá ali, olha!
- Nossa, aquele não é o –

Alessandro, seu antigo professor de História, que ela jamais imaginaria estar presente, bebia uma lata de cerveja, sentado de costas para a parede.

- Alessandro!
- Quem? – intrometeu-se Letícia.
- O professor de História, não lembra dele? – respondeu Fernanda.
- Ah... é.
- Ele continua igualzinho, uma gracinha. – emendou Rétz.

Letícia deu-lhe um tapa no ombro:

- Rétz!
- Que foi, menina?! É a mais pura verdade.

Fernanda ria:

- Eu não acredito, Rétz, você era a fim do professor de História desde o 2° grau?
- Não, a fim, assim, não, mas. Ele tem jeito de quem tem um caralho enor –
- Putaqueopariu, Rétz, seu tarado! – cortou Fernanda, ainda rindo.
- Ora, tarado! Sou só sincero. E o que você queria, que eu tivesse tesão de quem? De você? Da Lê? Do coordenador?
- Rétz! – agora Letícia interrompia.

Fernanda levantou-se:

- Vamos lá falar com ele!
- Hein? – Rétz quase engasgou.
- Falar o quê? – indagou Letícia.
- Sei lá, porra, qualquer coisa!
- Ah, pra quê. Eu, hein.
- Como é, Rétz, num vem?
- Fala sério, mulé!
- E que houve com a caralho enorme?
- Não fale assim comigo, menina, sou um rapaz muito tímido!

Risos em profusão.

- Não, sério, eu vou mesmo dar uma palavra com ele, eu gostava dele.

Letícia consegue dizer, entre um riso e outro:

- Não, não, o Rétz é que gostava dele!
- Tá, então vou só eu, então.

Ela levantou, dirigiu-se até lá e foi se aproximando sem aviso. Ele parecia não estar ciente dela, mas, antes que ela tivesse a chance de falar, cumprimentou-a:

- Oi, Fernanda. – tentou, o melhor que pôde, sorrir, mas sua expressão cabisbaixa acabou por alterar-se pouco.

Ela deu um pequeno recuo de surpresa antes de responder.

- Oi, oi, é, Alessandro. Professor. É, tudo bem? Como você vai? Quer dizer, posso interromper, cê num tá fazendo nada, né?
- Estou montando uma pirâmide de latas de cerveja vazias.

Havia duas latas vazias na mesa.

- É, você é ambicioso. – ela sorriu.
- Me ajuda aqui?

Ele lhe estendeu a lata, que tinha apenas uns poucos goles sobrando; ela despejou o conteúdo garganta abaixo e depositou o recipiente vazio no pano azul da mesa.

- Sabe que eu nunca bebo sozinha? – pensou em voz alta, já sentada ao lado dele. – Eu comecei a beber numa festa aqui na casa da Lú. Mas por isso passei a só beber com mais alguém, quer dizer, acho que é por isso, né. A gente tipo, era amigona.
- O irmão da Luciana? Sabe, ele foi um grande amigo meu, tempos atrás. Eu vinha muito aqui.
- Então cê conhece ela faz tempo né? Ela com certeza mudou muito. Era meio pati, mas depois daquela viagem de mochileira, virou outra pessoa.
- Mudou. Acho que tudo sempre muda, só eu continuo igual.
- Nem tudo muda, as pessoas continuam sempre as mesmas no fundo.
- Lá dentro.
- Sim, vê, eu continuo bebendo só entre amigos, e só pra celebrar alguma coisa, e de preferência, pra esquecer. E você vê, eu ainda –
- Fernanda, até eu consigo dizer o que você quer me perguntar.
- Consegue. É. Ele tá aí e eu não consegui falar com ele. Não quero. Se eu faço isso, vou acabar só. Cê entende o que eu quero dizer?
- Sim.
- Sei que não posso sair daqui sem dizer alguma coisa pra ele, mas não sei o que é, não vou conseguir dizer enquanto continuar nessa festa, eu e meus amigos. Não quero quebrar o clima. Tipo, não deve ser o momento adequado, né?
- Não.
- Pois é. Preciso de mais bebida... vou lá pegar... e. Cê viu a Paulinha?
- Você não veria nem que estivesse do seu lado. – ele apontou para Paula, que entrava pela porta da cozinha.
- Ah, valeu! Té mais, fsor!

Fernanda andou até a cozinha para, unindo o agradável ao agradável, encontrar a amiga e pegar sua cerveja. Paulinha tinha abandonado as camisetas escuras e calças jeans de outrora; vestia-se de branco, saia e blusa, deixara o cabelo passar um pouco do pescoço. No peito, a logomarca de um congresso de pedagogia. Conversaram durante uns bons quinze, vinte minutos, ali na cozinha mesmo, acompanhados durante um breve período de tempo por Luís, que tinha sido calouro dela com um período de diferença, na Puc – e as abandonou para encontrar-se com um dos poucos presentes do velho grupo nerd da sala de aula.

Paula confessava a Fernanda estar tendo um princípio de envolvimento com ele quando, esticando os olhos à frente, se interrompeu.

- Ih.
- Que fo – a outra ia indagando e desistiu, vendo os olhos de Paula mirando Rétz meio ao longe, conversando com Rodrigo. – Ah, não, fala sério, vocês dois ainda tão brigados? De nem se falar?
- Não, Fê, olha vai lá. Eu perdi a paciência com a bicha louca querendo ser estrela. Aprendi que é melhor nem chegar perto.

Fernanda mirou Rodrigo, demoradamente.

- É, né.

Ele a olhou de volta, à distância. Vestia uma calça jeans velha e meio rasgada, tinha a barba grande demais, parecia meio maltratado, como se não tivesse tido tempo de se arrumar para ir a festa. Fez uma cara esdrúxula, de quem não sabe bem como agir, e foi embora.

- Ele ainda gosta de você. – concluiu Paulinha.
- Gosta nada.
- Eu falei com ele. Ele queria saber de você e não sabia como perguntar.
- E o que cê disse?
- Que não sabia.
- Hm. Mas, hã.
- Não, ele não tá muito bem, não. Largou a faculdade, saiu de casa pra viver de um bico maluco num estúdio e acabou de voltar, e agora arrumou um trabalho quase escravo.
- Sei.
- Vai lá, a Lê tá chamando. A gente se vê depois. Diz isso pra ela, também.

Isto dito, virou-se pra trás e seguiu na direção para onde Luís tinha ido, e onde Luciana também estava.

- Graças a Deus, Fê! – Rétz chupou um gole de caipirinha pelo canudo. – Aquela vadia saiu de perto de você! É contagioso!
- Putaqueopariu, Rétz, eu simplesmente não consigo acreditar que cês dois continuam brigados! – retrucou Lê.
- Até aí, eu ainda nem consigo acreditar que ele é gay. – finalizou Fernanda.
- Porque é boba. Bichice tá no sangue, minha filha. Aliás, no genoma!

Letícia ria.

- Lá vai ele.
- Nasci bicha, vou morrer bicha, nunca duvide disso!
- Beleza, beleza. – respondeu Fernanda, deu mais um gole na cerveja que apanhara enquanto se sentava. – Mas essa de cê e a Paulinha não se falarem, deixa isso de lado, isso já era, é passado.
- Ó quem fala! – exclamou Letícia.
- Que tem eu?!
- Muito conveniente, você só voltar depois do Rodrigo sair, não é?

Rétz concordou com a cabeça, aproximou-se de seu ouvido antes de comentar:

- Ele ainda gosta de você, sabe.
- Por que todo mundo fica dizendo isso?
- Eu já tô me achando muito sozinha pra querer que você fique, menina. – respondeu Letícia, tornando a beber depois. Rétz afagou-lhe a cabeça.
- Tadinha, crise de fim de namoro. Mas estamos todos sozinhos. Você, com seu namoro acabado, a Fê, que tem um, como é. O passado assombra ela, tipo volta pra persegui-la, uma coisa assim de efeito. E eu, que só sou querido pelos meus dotes sexuais, sem ninguém que me –
- Putaqueopariu, Rétz! – Letícia o interrompeu, estapeando-lhe.

Fê tentou xingar, por entre risos:

- É, fala sério, vai tomar no cú!
- Deus te ouça, querida.

Muitos risos. Rétz ao final prosseguiu:

- Enfim, minhas queridas. Está faltando álcool aqui, isto é uma festa. O álcool e os amigos são pra esquecer a solidão e não lembrar dela. Vamos brindar a isso de.
- Um brinde ao álcool! – levantou-se Fernanda.
- Não me interrompe, piranha! – berrou Rétz. – Como eu ia dizendo, aos velhos amigos!
- Aos amigos! – repetiram os três, enquanto batiam as latas de cerveja umas nas outras, em torno da mesa circular.

_______________________________
"continua"...

14.4.05

Os Oito Copos - Segundo

Rodrigo tinha esperado por ela na porta do prédio durante quase uma hora. Disse que sabia que ela se atrasaria, mas não se importava. Estava diferente, vestia uma camisa xadrez, mas agora com um ar de sério, por dentro da calça. Tinha deixado crescer o cavanhaque e cortado o cabelo até à altura do pescoço, repartido ao meio. Ela adorava aquilo, tinha tara por aquele visual.

- Gostou? – ele perguntou, quando Fernanda comentou. O filho da puta sempre soube que ela preferia assim, desde a época do colégio. Quase lhe deu um soco; se ela gostou, ora é claro que gostou! Ele estava lindo!

Subiram no elevador comentando sobre a primeira vez que tinham vindo a uma festa naquele play, ele dizendo que sentia muita saudade daquele tempo – mas seu olhar deixava bem claro que, por “aquele tempo”, referia-se em grande parte somente a ela. Sorriam.

O play já estava cheio, e eles cumprimentaram, juntos, cada um dos seus antigos colegas de escola. Lê trouxera o namorado, um sujeito um pouco mais velho que estava com ela há mais de dois anos e terminava a faculdade de medicina. Ela pareceu espantada de ver que Fernanda vestia-se mais ou menos da mesma forma que há 6 anos antes, visto que ela mesma havia mudado totalmente de visual, de jeito, de tudo; não falaram muito, mas parecia feliz.

Demoraram a reconhecer Rétz, sem o cabelo esdrúxulo e todos os antigos acessórios, conversando com Picles e o tal Pedro – muito curioso, já que, até onde Fernanda se lembrava, na escola eles tendiam a se esbofetear à primeira vista. Rétz lhe explicou que os três vinham se encontrando muito no foro de justiça estadual, ultimamente, e estavam discutindo a falta de segurança nos corredores do mesmo. Rodrigo concordou com as afirmações, e após acrescentar que o foro federal, que ele freqüentava mais, era o exemplo a ser seguido, perguntou-lhes se tinham visto a Paulinha ultimamente.

- Ah, eu tenho visto ela, sim. – respondeu Rétz, sorrindo, mostrando a aliança no anular esquerdo. – Ficou em casa cuidando da Vivica, tadinha. Tava morta de sono.

Vivica era a filhinha de 3 meses deles.

Os dois escapuliram um pouco da agitação, foram até a beira da piscina.

- Não é esquisito? – perguntou Rodrigo.
- O quê?
- Não é, quer dizer, você não sente, não é? Isso, assim, nós, aqui, esse tempo todo depois, em frente à mesma piscina. Parece que nada mudou.
- Parece.
- Uma festa na casa da Lú. A gente sozinho aqui. Igualzinho à primeira vez que a gente ficou.
- A gente veio aqui depois que o Rétz e o Picles brigaram.
- É.
- E começamos a jogar o jogo do dedão.

Ela lhe estendeu a mão, e ele, sorrindo, segurou-a, e começaram a jogar.

- Aí eu te ganhei, como sempre. – disse ele, enquanto pressionava o dedo dela sob o seu.
- Ai! Solta! Solta! – ela riu de volta, torceu o braço em vão para tentar se libertar.

Ele pegou em sua mão e a olhou.

- Aí eu te beijei.
- É, nem disse nada antes.
- A gente nunca precisou dizer nada.

Ele aproximou o rosto.

- Precisou, sim. – ela o interrompeu.

Ele a beijou assim mesmo, e ela não encontrou em si vontade para resistir. Voltou a falar, quando seus lábios se soltaram.

- Precisou. – ele se aproximou de novo, ela desviou o rosto – Não, Rodrigo, não. Não vou passar por isso de novo. Ninguém merece essa burrice.
- Você fala e continua aí, sorrindo.

Ela demorou a perceber o sorriso que tinha se formado em seu próprio rosto, e ele aproveitou-se do instante de hesitação para beijá-la novamente. Fernanda não sabia mais como evitá-lo, como não achar que seu beijo, seus braços, fossem a única coisa boa no mundo, ao ponto em que parecia mesmo que eles estavam ficando pela primeira vez. Nada mudara, nada fora abandonado, nem esquecido.

Ele a puxou pelo braço, e seguiram rindo para a escadaria interna do prédio, exatamente como haviam feito 8 anos antes. Ele dizia, enquanto deslizava a mão por entre as pernas dela, que nunca havia conseguido esquecê-la, que as outras mulheres eram idiotas, que ele mesmo era um idiota. Ela nada respondeu, mas era porque não tinha coragem de dizer que sentia o mesmo. Ele beijou seu pescoço, subiu o rosto e, pouco antes de alcançar a boca, enquanto apalpava por dentro da blusa, declarou, como quem não consegue se impedir de dizer:

- Eu ainda te amo.

O barulho de uma porta se fechando, possivelmente apenas um andar acima, impediu o sexo, afugentando-os de volta para a beira da piscina.

- Vamos sair daqui. – Rodrigo sussurrou, pouco depois de mordiscá-la na orelha, já fora da escadaria.
- Já saímos.
- Não, daqui. Do play, da festa.
- Não sei...
- Tô de carro.
- Rod, eu, assim. Não sei.

Ela tinha consciência da falsidade de suas palavras; os atos, mais genuínos, geraram outro beijo. Ele se afastou na direção do elevador:
- Me encontra no térreo? Daqui a uns 10 minutos?
- ... tá.

Não achara outra palavra em sua boca, nem vislumbrava para si mesma futuro próximo que não envolvesse ela, Rodrigo, uma cama e nenhuma roupa. Teve um momento de sinceridade interna, enquanto rumava de volta para o salão de festas: aquilo era mais, melhor do que teria imaginado em qualquer um de seus sonhos. E ela sempre soube que não o esquecera, e que ainda sentia algo por ele, mas... não imaginou que seria tanto, tão forte.

No salão, o bloco dos nerds chegava em massa, cerca de 8 deles. Aparentemente, ainda se viam quase toda semana, mesmo depois de todos aqueles anos, e iam cumprimentar Luciana, que discotecava, e namorava um dos amigos deles. Vinham da mesa onde Alessandro, seu antigo professor de História, que ela jamais imaginaria estar presente, bebia uma lata de cerveja de costas para a parede, e se despedia de um homem sorridente, de rosto sardento, que saia por outra porta em direção ao elevador dos fundos.

- Professor Alessandro!
- Oi, Fernanda. – ele tentou, o melhor que pôde, sorrir, mas sua expressão cabisbaixa acabou por alterar-se pouco. Ela manteve o sorriso bobo, involuntário, que cismava em não abandoná-la.
- Meu Deus, eu não acredito, não a-cre-di-to! O que o senhor está fazendo aqui nesta festa?!
- Estou montando uma pirâmide de latas de cerveja vazias.

Havia somente uma lata vazia na mesa.

- Ah. – ela riu. – Que exemplo pra sua primeira turma de ex-alunos!
- Me ajuda aqui?

Ele lhe estendeu a lata, que tinha apenas uns poucos goles sobrando; ela despejou o conteúdo garganta abaixo e depositou o recipiente vazio no pano azul da mesa.

- Muito bom. Mas e aquele outro camarada lá, quem era?
- O irmão da Luciana, sabe? Ele foi um grande amigo meu, tempos atrás. Eu vinha muito aqui.
- Irmão? Qual, o Patrick? Não acredito! – ela parou e ajeitou as latas, enquanto ele fazia sinal para que o Mateus, ao longe, lhe trouxessem mais uma ao voltar. – Mas ele tem sua idade, né? E aposto que esse play não mudou nada desde a época em que você vinha.
- Mudou. Acho que tudo sempre muda, só eu continuo igual.
- Você acha mesmo? Quer dizer. Mesmo no meu caso. Quer dizer. Você sabe que eu. Não mudei muito, assim... como posso dizer...
- Lá dentro. – ele completou.
- É. Nem o Rod. E essas coisas, assim... elas nunca mudam, no fundo, né?
- Fernanda, até eu consigo dizer o que você quer me perguntar.
- Sei. Você me viu ficando com ele de novo. Todo mundo viu.
- Sim.
- E acha que as coisas podem ter mudado o suficiente pra dar certo dessa vez, se eu tentar de novo?
- Não.
- É, sei. Eu entendo. Fiquei o último mês inteiro pensando em como ia ser isso aqui, quando eu encontrasse ele de novo, fiquei sonhando que ele ia me dizer que ainda me ama, porque eu ainda amo ele, sabe? E fiquei sonhando que as coisas aconteceriam meio que igual à nossa primeira vez. E tudo isso aconteceu. Mas eu continuo tendo a sensação de que tem alguma coisa de muito errado, e não consigo enxergar o que é.

- Você não veria nem que estivesse do seu lado.

________________________________________
"continua"...

13.4.05

Os Oito Copos - Primeiro

Fernanda deu uma última olhada no convite – era exagero dizer convite, visto tratar-se apenas de uma mensagem de e-mail impressa em folha A4 parcialmente cortada, metade dobrada e totalmente amassada – antes de botar os pés pra dentro do salão.

“Bom pessoal, agora vai! O reencontro da turma foi adiado pela última vez, para o dia 18 agora, a partir das 21 hs. e só acaba qdo a gente se acabar! O local ainda é o play aki da minha casa, q pra quem num lembra...”

Parou de ler: lembrava. Tinha a impressão de que os momentos que tivera lá, por mais anos que se passassem, jamais ficariam distantes, e, embora um ou dois detalhes da decoração ou dos arredores tivessem mudado, ainda era basicamente o mesmo salão de festas, o mesmo playground. Sentia que, mesmo dali a seis décadas, poderia descrever em detalhes o salão a seus netos, que era meio que parte do que ela entendia por “eu”.

O play em si era grande. Havia agora uma piscina, de cara pro elevador, espremida entre a parede e a quadra, que pelo visto ainda era imunda e pouco usada – provável conseqüência do hábito perpétuo de alguns moradores jogarem água e ovos na direção de quem o fazia. O chão era claro, meio bege, e a maior parte da área, coberta; o que era uma benção de dia, mas, no momento, só deixava tudo abafado, piorava o calor já absurdo e fazia Fernanda pensar no custo em suor de sua calça comprida.

O salão era pequeno, escuro, moldado pelas paredes na forma de um “L”. Estava quase exatamente igual à festa de 15 anos da Lú: uma mesa em frente à entrada com salgadinhos, o equipamento de som na outra ponta, algumas mesas de plástico – com as mesmas toalhas de pano azuis – espalhadas entre uma coisa e outra, encostadas na parede. E quase ninguém presente, ainda; nem mesmo a própria Luciana, que organizara a festa, ou o Picles, que para o desespero de Fernanda, ia discotecar. No salão de festas apenas Alessandro, seu antigo professor de História, que ela jamais imaginaria estar presente, sentava-se em uma das cadeiras, de costas para a parede, e bebia uma lata de cerveja.

- E aí, fsor! – ela se aproximou, sorrindo. – Não sabia que cê vinha!
- Oi, Fernanda. – ele tentou, o melhor que pôde, sorrir, mas sua expressão cabisbaixa acabou por alterar-se pouco. Ela manteve-se animada o melhor que podia.
- Fazendo?
- Estou montando uma pirâmide de latas de cerveja vazias.

Não havia nenhuma lata na mesa.

- Pirâmide, é? – ela riu. – É um idealista!
- Me ajuda aqui?

Ele lhe estendeu a lata, que tinha apenas uns poucos goles sobrando; ela despejou o conteúdo garganta abaixo e depositou o recipiente vazio no pano azul da mesa. Alessandro fez uma expressão de satisfação, e depois, lançando um olhar ao redor do salão, comentou, numa puxada meio deslocada de assunto:

- O irmão da Luciana? Sabe, ele foi um grande amigo meu, tempos atrás. Eu vinha muito aqui.
- Porra, jura? Que bizarro! Cadê ele, taí ainda?
- Mudou. Acho que tudo sempre muda, só eu continuo igual.
- Arrãaaam... E a Lú?
- Lá dentro.
- Ahn. É, bem. E o. Hã.

Silêncio incômodo.

- Onde tem mais dessa cerveja, psor?
- Fernanda, até eu consigo dizer o que você quer me perguntar.

Suspiro.

- Tá. É. Meio óbvio. Dã.
- Sim.
- Ele ainda não chegou, né?
- Não.
- Hm. Então, bem. E a cerveja? Eu acabei não trazendo a minha, sabe.
- Você não veria nem que estivesse do seu lado. – respondeu, e apontou para a porta ao lado da mesa, que sem dúvida levava à cozinha, onde haveria a geladeira.
- Valeu.

Foi apanhar a lata. Pensando bem, tinha se preocupado e criado expectativa à toa. Dificilmente algum de seus velhos amigos, Rétz, a Lê ou a Paulinha, viriam, e a Lú com certeza teria se transformado ainda mais numa páti mala, e ela só iria esbarrar num bando de playbas inúteis que ficariam estranhando seu traje de calça e suspensório e olhando torto. E Rodrigo não viria, também. E ela já estava se condicionando à idéia de que iria passar as próximas horas bebendo e jogando conversa fora com Alessandro.

Então ouviu uma voz familiar e deixou a cerveja cair no chão. Não esperava uma reação tão forte de si mesma, era como se seu coração ricocheteasse pelas costelas e o estômago tentasse se enrolar na pele da barriga. Não sabia se devia se alegrar ou morrer de medo, ir correndo pra lá e dizer que morria de saudade ou passar calmamente pela porta, não sabia nem se apanhava a cerveja do chão ou a deixava lá. Apanhou. Correu até a porta, mas deteve-se quando o viu.
Era o Rodrigo, sim.
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"continua"...