28.1.05

Tira De Mim



"eu não acredito em tudo que eu mais quero
mas vivo a sonhar com você a me beijar
e essa dor que sara faz viver e acordar pra mim
eu quero ver você dançar
em cima de uma faca molhada de sangue
enfiada no meu coração"

- Mombojó, "Faca"

a pedra é fria sob minhas costas nuas e já são mais de três da noite e o caçador já desceu no horizonte fugindo e agora a sétima estrela é visível nas garras do escorpião e o canto está começando.

são três cantos.

ela não me mostra o rosto mas eu sei que está sorrindo e eu ainda estou segurando a faca firme e ainda estou morrendo de medo mas não é um medo como os outros é como um medo do sucesso e não vou mesmo ficar vivo muito mais tempo não quero. ela soltou os cabelos. está me pedindo a faca e eu imediatamente lhe dou segurando na ponta e ela pega pelo cabo pesado encrustrado de jóias vermelhas que dizem ser a cor do meu coração que eu não posso mais suportar que continue assim batendo desse jeito e agora estão começando o segundo canto.

eu a amo.

não posso mais suportar isso que continue assim batendo assim me enchendo desse sorriso estéril me tornando uma pessoa pior inútil sem rumo. ela está se despindo. eu fiquei ainda mais feliz quando o velho disse que eu estaria no altar quando a sétima estrela estivesse de novo nas garras do escorpião e aquilo me deixou perturbado mas quando soube que seria ela comigo eu não fiquei mais porque eu a amo e agora estão começando o terceiro canto.

e quando terminar eu vou estar curado.

eu fico quase paralisado e digo a ela enfia a faca logo me mata me faz sentir dor deixa a dor me curar eu quero ver meu sangue quero morrer vendo meu sangue manchando a sua pele a sua boca me enfia a faca e me beija. ela enfia a faca e me beija. bate na faca com a mão. a dor é tão grande que eu não grito não consigo gritar e mesmo que tentasse ela me tapa a boca e me suga o ar e eu solto só um gemido fraco e ela diz eu te amo e eu quero responder também. e ela chora. e eu também devo estar chorando e é tudo tão triste e eu não sou mais estéril não sou mais inútil sou a morada da tragédia e da poesia eu digo a ela chora por tudo que é sagrado chora chora muito lamenta e sofre e agradece sempre quem te machuca e me dá a solidão me dá a tristeza.

tira de mim a alegria.

Vates

Já foi dito, e há quem diria que eu mesmo fosse defensor ardoroso desta tese, que a arte nasce somente diretamente do sofrimento, da dor, da solidão; e o q questiono aqui é apenas o tal "diretamente" - pois q não são a felicidade, o prazer e o amor, senão a cura dos anteriores? mas tal discussão não terá mais espaço neste post. Admitamos q a arte nasce também da felicidade.

Em q resulta tal arte? Para o solitário sofrido, ela é de pouca valia, uma máscara de desejo para a realidade da qual ele deseja se distanciar, mas raramente motivadora. Pelo feliz, ela tb nada demais faz: pessoas felizes têm a vida naturalmente repleta de poesia e podem, facilmente, criá-la, se acharem que precisam de mais, ou que sua felicidade deveria ser partilhada da melhor forma possível. Ela pode até torná-los ainda mais felizes, mas mesmo nesta função a arte nascida da dor a superará; não há motivo melhor para a felicidade do q perceber como se deixou a tristeza para trás, o quão longe ela ficou.

E para o solitário, o melhor remédio não é a ilusão da felicidade, que não passa de qquer forma de anestésico. Ele precisa de grandes doses de sofrimento compartilhado - a vacina não passa de uma forma levemente diferente da própria doença, a cicatrização vem da dor. O doente de tristeza precisa de álcool na ferida, da brasa cauterizante; a alegria o fará ainda mais triste, a arte estéril da felicidade pode pouco para além daquele que a criou.

É claro q há exceção, q há mediocridade e esterilidade na tristeza, e superação na alegria. Mas os melhores vates são quase todos uns fodidos.

26.1.05

Escolha

Vivemos a ascensão da geração shopping center; Toffler quebrou a cara: seu "prossumo" continua a anos-luz de distância, e do lado de cá permanecemos só consumindo, mesmo. a vida ainda é como um longo passeio por corredores entupidos de lojas onde adquirimos nossas identidades - roupas, músicas, livros e filmes favoritos, possivelmente em kits de tribos ou turmas, dentro das fileiras das quais por sua vez adquiriremos também nossos amigos e amantes. A vida é escolha, e a escolha, uma sucessão de fragmentos inconciliáveis.

Inconciliável é precisamente a palavra. Vê, Angela? O que acontece com os fragmentos de tua vida? A escolha é como um trio de jovens apaixonados se matando pelo afeto de sua amada: ela mesma é que opõe e divide, separa, fragmenta. A escolha é a morte anunciada de toda possibilidade, de tudo que você também gosta mas não priorizou. O arbítrio é a suprema intolerância, a limitação humana, e sua maior ferramenta de criação: assassino e pai de todas as histórias. É risível, trágico, almejar a totalidade enquanto nos fragmentamos, buscar a tolerância enquanto rejeitamos; a contradição interna é a alma da existência - e por isso mesmo emocionante, verdadeira.

O beco sem saída da escolha é a maior mentira dos propagandistas do arbítrio, é a letra miúda do contrato de compra assinado pelas almas inocentes rumo ao útero materno: não podemos escolher não escolher. A escolha é obrigatória, e a obrigação, a negação da escolha; lados da mesma moeda cuja existência vai mutuamente se anulando e magicamente regenerando logo após, mais um episódio em que o rabo da cobra tornará a crescer depois de mordido. O fardo do arbítrio é a raiz de toda a necessidade; a escolha, a mãe da injustiça.

25.1.05

A Cor De Seus Olhos - Angela

Cruzador espacial Merkabah. O futuro distante.

Raphael é o bio-engenheiro chefe de pesquisa. Marcos é o capitão. Ivan é o psico-supervisor da tripulação. Angela é uma andróide data com chip emulador de emoção ativado. Seus olhos são prateados.

Ivan a analisa, como parte das investigações do funcionamento do chip; percebe que ela está se apaixonando por ele, mas, como corresponde o sentimento, não consegue afastar-se da função. Raphael percebe, faz queixa formal a Marcos; Ivan está prestes a ser preso por desacato quando os neo-sofistas atacam a nave. Angela se põe na frente de Ivan para protegê-lo, arremessando-o num módulo de fuga. Só ele escapa, amaldiçoando ter sido fraco, pensando que deveria ter sido ele a se jogar na frente dela, com a estranha sensação de que, em algum outro lugar e momento, foi ou viria a ser exatamente isso que ele faria.

Tempo.

A República, como Platão imaginou que seria.

Raphael é um guardião. Marcos é um guardião. Ivan é um guardião. Angela é uma guardiã. Os olhos dela são da cor do mel. Na noite do ritual, quando os homens deitam-se com as mulheres designadas pelos conselheiros, Raphael é designado para Angela por ser considerado superior como aluno. Mas ela deita-se com Marcos. Ivan os delata. Angela é capturada e Ivan a executa no cativeiro, por vingança. Marcos condena o modo de vida da República e inicia uma rebelião. Mata Ivan, Raphael e os conselheiros. A República cai.

Tempo.

A Encruzilhada das Dimensões. Uma raça de imortais.

Raphael é o Sábio. Marcos é o Guerreiro. Ivan é o Adivinho. Angela é a Sacerdotisa. Os olhos dela têm cores diferentes entre si. Ela escolhe Raphael, mas entre os imortais, Sacerdotisas só podiam gerar filhos de Adivinhos. Angela e Raphael são exilados. Refugiam-se num plano distante e vêem Angela escolhendo Marcos e, de outra feita, Ivan; aquilo perturba o Sábio, guia das viagens planares. Sem a concentração, eles se perdem, e permanecem perdidos um do outro para sempre.

Tempo.

Uma pequena comunidade matriarcal de agricultores. O passado distante.

Raphael é mestre dos tecelões. Marcos organiza a defesa da vila. Ivan consulta as estrelas para saber a época das colheitas. Angela é a chefe. Seus olhos são castanhos claros. Ela se dá o direito de escolher os três ao mesmo tempo, casa-se com todos. Deitam-se juntos, na mesma noite; não podem saber de quem é o filho. O ciúme, em 3 anos, leva Marcos a matar Raphael com a lança; Ivan a matar Marcos com um dardo envenenado; a tribo a executar Ivan numa grande pira; Angela a jogar-se de um penhasco.

Tempo.

Ninguém se importa com a cor dos olhos dela. Ela se muda para a Inglaterra antes de ter de escolher.

Tempo.

Os olhos dela são castanhos escuros. Ao ver a briga no meio da peça, ela berra dizendo que eles são todos iguais, e escolhe a solidão.

Tempo.

Os olhos dela têm a cor do breu. Na praça onde Angela morou quando criança havia uma árvore, na árvore havia uma jóia multi-facetada. A Jóia do Mundo de Kardios, companheiro de Ethos, artefato lendário, de alguma forma a mesma jóia; Angela vê tudo nela; vendo tudo, é tudo, e, sendo tudo, não escolhe nada.

Não há totalidade na escolha, nem escolha na totalidade.

E há, na realidade, apenas uma Angela, apenas uma história, apenas uma escolha, apenas um dos três é seu amor. Sempre houve somente uma história. Sempre haverá somente uma. Somente uma cor para seus olhos.

Mas ainda não se sabe qual.

Aplausos

Essa é pra quem sabe do que estou falando. não acho que ninguém vá saber. e não vou contar.

Sou normalmente pessimista; na verdade, o verdadeiro pessimista o é porque até alegre é pessimista, até otimista é pessimista, fatalista, o fatalismo lhe é intrínseco. Eu não costumo gostar do rumo que os eventos seguem, talvez você diga, "porque és um babaca", mas sinceramente, acho q é simplesmente pq nunca sai como quero... mais provavelmente, ambas as coisas. pensando bem.

Então, não gosto, não sou obrigado a fingir q estou gostando, estou feliz; tenho ódio mortal de gente me dizendo "sai dessa, alegre-se". alegro-me quando quiser retardado, não quero alegria forçada e falsa, muito obrigado; não sorrio bobo com uma musiquinha, uma flor, uma comédia pastelão.

Mas tem vez que é foda. Você olha pro q está acontecendo e tem essa distanciada, apesar de ser contigo você consegue distanciar, e mesmo que as coisas não estejam indo bem, seja lá o que estar indo bem queira dizer, mesmo assim não consegue evitar de pensar que, porra. é muito bom. é muito, a palavra é inadequada, eu sei; muito "bem-feito", todas as situações, a maneira como cada historinha pessoal vai se encaixando uma na outra, a maneira como tudo fica sempre na medida do dramático sem ser brega, ou até brega dependendo do gosto do freguês. numa hora dessas eu acabo sempre olhando pro alto, aplaudindo e dizendo:

"Boa deus. Boa mesmo.

Eu não teria feito melhor."

24.1.05

A Cor de Seus Olhos - Axioma de Maria

Suíça. Entre Guerras.

Raphael veio para uma conferência acerca da mecânica quântica. Marcos é militar alemão de férias. Ivan é aluno de Carl Gustav Jung. Angela mora sozinha, toca piano no restaurante onde os três costumam jantar. Seus olhos são cinzentos.

Raphael envia-lhe poesias escritas nos guardanapos, ao custo da caríssima caneta que recebera da organização do congresso e ostentara como símbolo de seu crescente prestígio como jovem pesquisador. Ela gosta das poesias e vem agradecê-lo pessoalmente; passam a ter longas conversas sobre música, poesia e arte moderna em passeios pelas praças de Geneva, mas ele teme, possivelmente com razão, que ela, embora agrade-se dele, não o corresponda.

Marcos a encontra sendo intimidada por alguns de seus compatriotas nacionais socialistas, e os rechaça usando da patente. Percebe então o quanto veio a se importar com ela, mesmo nunca tendo trocado palavras. Ela diz pouco ou quase nada, e ele se preocupa, pois imagina, possivelmente com razão, que ela esconda algo. Escolta-a até em casa e, aprendendo o endereço, passa a vigiá-lo de quando em quando.

Seus medos não são infundados: os nazistas tentam invadir e vandalizar o apartamento de Angela, vindo Marcos a intervir e frustrá-los novamente. Agora ele lhe pede explicações, e ela diz que a perseguem por ser alemã e judia, refugiada. Marcos, é um entusiasta de sua pátria; ao ouvir isto, dá-lhe as costas e vai embora, como se agora considerasse os vândalos justificados em sua atitude. Ela cai na cama e chora, percebendo que também se importa com ele.

Ivan observara tudo, à distância: Angela e Raphael, os vândalos, Angela e Marcos. A sensação de que tudo aquilo era, de alguma forma, uma repetição, o assombra; as teses de seu professor encaixam-se feito luva na realidade. Arquétipos humanos dentro dos quais a experiência é assimilada. Símbolos quase universais de personalidades, situações que no fundo são sempre as mesmas. O masculino rejeitando mas, também, desesperadamente buscando o feminino - Maria, o 4º pilar de Deus. Fogo, Terra, Ar e Água; e quem era qual? Quem tinha sido qual, em cada momento, e quantas vezes?

Ele aborda Angela em um beco escuro, quase a mata de susto. Tenta explicar-lhe tudo que pensa, mas sua linguagem é, como sempre, cifrada, só sabe falar sem falar, a ação direta está além de seu alcance.

"Você tem que fazer alguma coisa", é o melhor que ele consegue lhe dizer, antes que ela se afaste como quem escapa de um pedinte, "tem que fazer parar, tem que impedir de acontecer de novo!"

Marcos volta para a casa um dia para encontrar o apartamento de seu tio, onde passava as férias, destruído. Amaldiçoa a vaca judia que lhe valera tanto tormento, mas suas palavras soam vazias. Ele corre para o apartamento de Angela e a encontra retornando de um passeio com Raphael. No momento em que Marcos, sem nem trocar uma palavra, está prestes a esmurrar o rosto do físico, Ivan surge do nada e intervém. A essa altura já está enlouquecido, balbuciando fórmulas astrológicas e cabalísticas incessantemente; Angela parece entender parte do que ele diz, põe-se a proteger ambos de Marcos, que agora ameaça agredi-la.

Ela insulta-o e o ameaça. Ele a ama e a odeia; não consegue aceitar que o destino de uma das porcas de Davi lhe importe tanto, não consegue negar o que lhe foi ensinado. Raphael percebe e entende o que eles sentem entre si e, no instante antes dele tentar falar, os nazistas surgem, armados, com juras de vingança. Raphael põe-se na frente de Angela e recebe as balas, dando tempo a Marcos de revidá-las, eliminando seus algozes. Ela chora sobre o corpo de Raphael, mas ele morre vendo em seus olhos cinzentos que ela escolhera o outro.

Marcos a abraça até quase machucá-la, a todo tempo perguntando se algo tinha lhe ocorrido. Beijam-se. Ele já esqueceu o exército, já esqueceu sua devoção à pátria; Angela agora é sua vida.

Ivan caminha calmamente até a residência de Carl Jung e tenta assassiná-lo, como quem culpa uma luneta pela queda de um cometa. A pedido do médico, preocupado com seu aluno, o caso não é registrado, mas Ivan é enviado para uma casa de saúde, aonde, frequentemente, dizia a seus médicos e companheiros de tratamento a única coisa que Angela havia entendido naquele dia:

"O nome de Deus tem 3 letras que se tornam 4."

Tempo.

21.1.05

A Cor De Seus Olhos - Bodas de Canaã

Baixa Idade Média. Uma Igreja.

Angela, órfã de camponeses vítimas da peste, é acolhida lá. Raphael é o mais jovem padre local, com os votos recém-feitos. Ivan é estrangeiro, veio do leste, uma mistura de bruxo, vidente e vendedor de bugingangas na vila mais próxima. Marcos retorna das cruzadas, a caminho de receber o título de Barão de El Ferrol, na costa oeste da Galícia. Os olhos dela são azuis claros.

Raphael passara muitos dias de sua vida tentando, em vão, converter Ivan à sua fé, pois julgava que ele era no fundo um bom homem, e que podia levar uma vida moralmente correta e gratificante, longe dos afazeres do demônio. Ivan, que normalmente falava pouco, sempre sorria-lhe de volta seu meio sorriso e retrucava com citações de algum evangelho apócrifo, mestres gnósticos ou ensinamentos da igreja ortodoxa. Aquilo durara até que Ivan lhe perguntasse, sem nada que aparentemente o levasse a fazê-lo, de quem tinham sido as bodas de Canaã.

"E que importa isso?", retrucou Raphael.

"Importa", respondeu-lhe Ivan, "porque foram as bodas de Jesus e Madalena. Ou pensas que é por acaso que João diz ser ela quem mais chorava, e a quem Cristo mostrou-se primeiro?"

"Como podes pensar que Cristo casaria-se com uma prostituta?"

"E o que te faz pensar que ela era uma?"

Foi enquanto discutiam esta hipótese que Raphael e Ivan avistaram Angela pela primeira vez, enquanto o Coroinha a trazia para a Igreja, inconsciente, e pela primeira vez o jovem padre vacilou em sua fé; nunca sentira emoção tão forte.

Ivan trama para conquistá-la. Em uma noite chuvosa, usa um feitiço que aprendera com os galeses para tornar fraca sua vontade e imbuí-la de desejos. Ela surge na madrugada pelos corredores dos fundos da igreja berrando e rasgando suas vestimentas, enquanto corre para fora, na direção da cabana de Ivan. Raphael, percebendo que ela não é dona de sua vontade, a detêm e exorciza, quebrando o feitiço; ela cai desmaiada em seus braços, e no instante em que abre os olhos, pouco depois, passa a corresponder os sentimentos dele.

Ela lhe oferece sua gratidão eterna por ter sido salva da perdição e, mais tarde, por meio de uma carta, oferece-lhe também o seu amor, ainda que ele nunca viesse a consumar-se. Ele recusa-a sempre, mas, no fundo, vacila - afinal, porque devia ele, um mero pecador, ser casto, se nem o filho do Homem o havia sido?

Marcos está de passagem pela cidade, e vendo a moça durante a missa, mesmo prestes a casar-se, passa a desejá-la mais que qualquer outra coisa. Aborda-a, oferece-lhe até um lugar na corte, próxima a ele, mas ela o recusa, escolheu Raphael, tem apenas espaço para ele. Marcos tenta violá-la, ali mesmo, nos fundos da igreja; Raphael aparece e intervém. Marcos é poderoso e influente, mas não se arrisca a enfrentar o clero.

Angela decide que, se não pode passar a vida com Raphael, prefere então dedicar-se a Deus, como ele; viajará para um convento para tornar-se freira. Ivan vê nisso oportunidade de uma aliança. Ele aborda Marcos, e o convence a usar mercenários para capturar a moça quando ela se dirigisse ao convento.

Na véspera da viagem de Angela, porém, Raphael a encontra, às escondidas, quebra seu voto e deita-se com ela. Também escondido, acompanha-a na carroça que a leva para o convento, sem saber dizer o porquê. Os homens contratados por Marcos cercam-nos ao amanhecer, matam o cocheiro e, estando prestes a violentar Angela, desobedecendo seu contratante, são detidos por Raphael, mesmo desarmado, que dá a ela chance de fugir. Ele não tenta acompanhá-la: põe-se na frente de diversos golpes de espada, cai ferido.

Morre feliz, pensando em Cristo, seu senhor, e na cor dos olhos da noiva de Canaã.

Tempo.

18.1.05

Dependência

Da próxima vez em que o camarada leitor se pegar pensando coisas na linha de "não tem problema pegar uma prova final", "vou sem estudar mesmo", faça um favor e pense duas vezes. Se vir alguém com essa atitude, dê-lhe um esporro: professor é gente e deveria ter direito a um tempo de postagem mínimo, como aliás todo mundo; o blogger deve ser institucionalizado. Escrita causa dependência, a escrita pública é pior, e eu estou com síndrome de abstinência, em uns anos vai ser quase como respirar ou falar sozinho. E qdo vc fala sozinho ninguém responde.

Por isso a pior coisa é o feedback. O feedback prum solitário é pior q heroína, mesmo pouco. dê-me uns meses e eu talvez até precise sair de casa; talvez saia por aí mostrando uma prosa qquer e berrando "vamos, digam o q acham disso, digam pelo amor de deus! digam q gostam do q eu fiz, ou q não gostam, digam alguma coisa, falem comigo!"

"Eu não quero ser negado!"

14.1.05

A Cor De Seus Olhos - Lua Escarlate

A Era dos Heróis.

Marcos é Ethos, Ivan é Darlis, Raphael é Kardios, Angela é Yeda.

Ethos é abençoado pela Deusa, espadachim valente. Darlis, seu grande amigo, um trapaceiro, trambiqueiro e falsário, que abusa da falsa fama de seu nome (cujo significado é "Mata-Dragões") para sobreviver. De Kardios sabe-se muito pouco, mas sabe como ninguém contar uma boa história. Yeda veio do oeste, da Terra dos Dragões, onde lhe ensinaram a fazer coisas fantásticas, como flutuar ou conjurar uma tempestade; seus olhos são como esmeraldas.

Yeda escolhe Darlis. Ethos amaldiçoa a Deusa, que lhe negou sua amada, e arremessa a espada da família sobre a Lua, onde ela morava, ferindo-a; o sangue divino pinta o astro de vermelho. É o sinal de todas as profecias de desgraça, que começam a se concretizar, precipitando o fim de uma Era. Os dragões vêm do oeste para destruir os homens.

Ethos lidera os 12 heróis, portadores dos artefatos lendários - inclusive ele mesmo, que, segundo a profecia, seria o segundo dos 3 únicos mortais dignos de portar a Lâmina Solar, a mais poderosa espada já feita; Darlis, Kardios e Yeda - contra os monstros. Têm vitória após vitória, e ele decide partir para o oeste e enfrentar o perigo em sua origem; de todos os heróis, apenas seus 3 amigos o seguem.

Em batalha contra um Rei-Dragão, Darlis cai. Yeda acusa Ethos de não ajudá-lo quando pôde, e desesperada pela perda do amado, insulta e ameaça o guerreiro. Ele a ama e a odeia, mais que tudo na vida; odeia por não ser sua e por ela agora odiá-lo. O amor e o ódio transbordam na forma de fúria; ele berra aquilo que seus inimigos, os dragões, um dia lhe disseram:

"Eu não serei negado!"

E perfura o estômago de Yeda com a lendária Lâmina Solar, só percebendo o que fazia quando o corpo dela caiu inerte em sua direção. Incapaz de viver com o que fez, ele se atira de um penhasco rumo à morte.

Kardios retorna para contar a história. E dizem que até hoje, por vezes, nascem herdeiros do espírito de Ethos, que sofrem a mesma maldição, fadados a serem rejeitados e ferirem aqueles que mais amam; carregando desde nascidos a marca da Lua Escarlate.

Tempo.

12.1.05

A Cor De Seus Olhos

Distribuição em sala de aula, 6ª Série.

Raphael senta-se na frente. Tem o rosto fino, os cabelos castanho-claros, cacheados, olhos idem, óculos de aro vermelho. Presta atenção na aula, lê e escreve sobre coisas diversas enquanto o faz. Tem por hábito testar os professores com pegadinhas práticas. Joga RPG, lê Homem-Aranha; teve até hoje somente dois colegas a quem chamou também de amigos, mas tem certeza de que mereceram ser chamados assim. Guardou durante o último semestre inteiro todas as bolas de papel jogadas sobre si, e chegou a pensar em apresentá-las à coordenação como evidência, mas mudou de idéia e, no último dia de aula, levou-as todas num único saco plástico e arremessou-as de uma vez nos garotos de trás. Interessou-se por apenas uma única garota em sua curta existência.

Marcos fica atrás, no centro, quase no meio, caindo para os lados e até mais para a frente conforme o dia. É grande para sua idade, bem constituído, tem o rosto quadrado, os olhos claros e os cabelos longos, loiros. Chama a algumas dezenas de moleques de sua idade de amigos e, no momento, a três meninas de namorada, sem que nenhuma delas realmente lhe interesse. Vai ao banheiro uma vez por tempo de aula, levando o máximo de tempo possível cada vez que o faz, parando para conversar com todos que encontra pelo caminho; e todos, frequentemente, ficam felizes por conversarem de volta. Anda para a escola sozinho e, muitas vezes, vai à praia em vez do colégio, arrastando quem quer consiga no processo. Nunca passou de ano sem recuperação. Enfurecido com alguma coisa que lhe disseram, quebrou dois dentes de um menino, e foi suspenso por 3 dias.

Ivan fica atrás, no canto. Sempre o mesmo canto. Assiste à aula com as costas para a parede esquerda, braço sobre o joelho direito, e a perna dobrada. Os cabelos são lisos, negros, descendo até os olhos também negros, rosto redondo, meio pálido. Abre um meio sorriso torto para a esquerda ao invés de rir. Tira notas medíocres. Nenhum professor o reconheceria na rua, mas todos os alunos o fariam. Fala pelos cotovelos se interpelado, mas nunca chamou ninguém de amigo. Se tem, teve, e mesmo que venha a ter, interesse em qualquer menina, de qualquer idade, ninguém saberá sem que ele mesmo o diga.

Angela muda de lugar o tempo todo, está claramente deslocada na sala; fala com todos, não se liga a ninguém. A cor de seus olhos ninguém guarda direito, e isto não parece importar. Tem o rosto redondo, a pele branca avermelhada e os cabelos da cor do fogo, anos e anos a fio cultivados; pensa em cortá-los num ato de proposital rebeldia prá-adolescente, mas não sabe ir ao salão sozinha. Seu toque é gelado. Todos a quem uma vez chamou de amigos ficaram na escola anterior. Sorri pouco, mas de forma genuína. Aparenta a mais absoluta convicção, mas está, ou é, terrivelmente dividida. Interessou-se, interessa-se ou se interessará, por 3 meninos de sua idade. Em dado momento serão homens mas, por hora, meninos.

Raphael escreve-lhe bilhetes recheados de versos românticos, seus e de outros; não é brilhante mas,sem dúvida, comovente. Dscrevia cada gesto, cada pequena coisa que Angela fazia, cada detalhe de seu rosto, e sua voz, e explicava-lhe como ela fazia cada dia de sua vida mais feliz. Ainda cora e treme quando ela se aproxima, mas faz tempo que conversam durante as aulas, quando ficam para as atividades extra-curriculares à tarde, e por meio de bilhetes, torpedos e e-mails a qualquer tempo. Poucos dias atrás, ele inspirou forte, tomou a mão dela e declarou amá-la, no meio da rua, sem avisar. Ela não sabe porque regiu a isto beijando-o, mas sabe ter sido a primeira a fazê-lo.

Marcos abandonou outra para aproximar-se dela em uma festa americana. Angela acha-o lindo, uma graça. Ele a faz rir descontroladamente. Leva-a à praia, à lanchonete, festas, passeia com ela pelo recreio e a apresenta a dúzias de pessoas diferentes, conhece todos, conversa com todos, inclusive seus amigos do velho colégio. Ele a faz esquecer de seus problemas, deixa-a alegre, leve. Sabe fazer-lhe cócegas, e passar a mão pela sua cintura, segurá-la firme e surpreendê-la com um beijo antes que ela perceba ou tenha tempo de impedir - até porque, ela não impediria, e adora quando ele faz isso.

Ivan apareceu um dia, dentro do elevador do prédio dela, como se tivesse estado lá dentro esperando desde sempre. Nos dias subsequentes, surgiu em lugares diferentes da mesma maneira. Desperta-a de seu sono para passeios na madrugada e a leva a lugares proibidos; armazéns abandonados, rochas à beira-mar, bares e praças onde gente mais velha se reunia. Ele era até respeitado nestes lugares, e não os temia, parecendo adivinhar exatamente quando e como ela teme. Aliás, parece adivinhá-la sempre: sabe aonde ela quer ir, sabe quando e o quê quer beber, quando tem frio, quando quer voltar pra casa. Beijaram-se 3 vezes; todas elas, ele sorriu como quem já sabia de ante-mão, apontou algo atrás dela, e desapareceu.

Ela não sabe até quando pode esconder um do outro, e não liga.

Tempo.

2° Grau. Angela acaba de mudar de escola e entra para o teatro. Ivan é vocalista de uma banda. Raphael ajudou a escrever a peça que será apresentada no fim do ano. Marcos não fazia nada. Ela tem os olhos castanhos escuros.

A banda de Ivan faz a trilha da peça. Marcos aparece um dia no ensaio, por curiosidade; não há atores disponíveis e o diretor pede pra que suba ao palco para ajudar Angela com uma cena romântica. Gosta do resultado e o escala. Raphael e Ivan mordem-se de raiva e ciúme; o último escrevera boa parte da cena como uma declaração secreta para ela. Ivan sabota o texto de Marcos. No dia do ensaio geral, este erra as falas, sai-se mal, Raphael aproveita a deixa para humilhá-lo em público; Marcos quebra-lhe dois dentes. Ivan ri seu meio sorriso. Angela não consegue escolher um lado, não se conforma em ter de escolher.

Tempo.

Raphael, Marcos e Ivan racham um apartamento. O primeiro cursa física, o segundo, direito, o terceiro, psicologia. Angela volta ao Rio depois de viver 12 anos nos EUA, após a morte súbita e inexplicada do pai. Faz jornalismo. Seus olhos têm a cor do breu.

Ela conhece Marcos na praia, Raphael numa convenção, Ivan numa festa. Tudo começa a se complicar de maneira terrível. Os três a amam sem saber um do outro, mas ela sabe e não consegue revelar. Um deles estuda feitiçaria de noite, escondendo o fato até de si mesmo, através de uma outra personalidade; sem saber, também foi possuído por um espírito ancestral. Angela é seguida por um homem pálido de cavanhaque; acaba por raptá-la. Seu guardião no cativeiro, chamado Eduardo, alega que ela é a herdeira do poder divino, sem esclarecer o que quer dizer com isso, ajudando-a a escapar em seguida; seu mestre não atende por nomes, tem os olhos vermelhos, e Angela prefere não pensar no que ele faria com ela.

Os três amigos descobrem, ao mesmo tempo, que todos conheciam e amavam Angela. Agora as coisas estão dando fantasticamente errado. Um mal ancestral desperta. As estrelas desaparecem. Uma entidade de escuridão, profeta, diz que um dos três é o escolhido, o herói da história, o mago, o salvador do mundo: aquele que ela escolher, seu futuro esposo.

Mas ela não consegue escolher. Sabe que tudo depende dela escolher, mas sabe que, se o fizer, pode ser que tudo dê ainda mais errado, se é que isso seria possível.

Tempo.

___________________________________

"Continua"...

8.1.05

Os Três Cegos E O Elefante

Você deve conhecer a história dos 3 cegos e o elefante. Bem, resolvi apresentar minha própria versão.

Havia 3 cegos vivendo num lugar deserto e ermo. Certo dia, quando estavam quase falecendo de fome e sede, conseguiram sobreviver seguindo o barulho de um elefante, que os levou até um riacho e à comida. Convencidos de que era um sinal divino, decidiram reverenciar o elefante. Para isso, aproximaram-se e tocaram-no.

O 1º cego, tateando a pata, disse:

- O elefante é como uma árvore!

O 2º, tateando a tromba, disse:

- O elefante é como uma cobra!

E o 3°, tateando a bunda, disse:

- O elefante é... é... como uma grande bunda!

Assim, convencidos de que o animal era um sinal dos céus, os cegos pautaram suas crenças e costumes segundo a impressão que dele tinham.

O 1°tornou-se um amante da natureza, especialmente das plantas e árvores. Agricultor, vegetariano, acreditava que a vida é cíclica como a colheita, e que a aceitação da dor e da morte é apenas o caminho para outra vida; assim, era também um pacifista.

O 2° era um caçador, treinado (o tanto quanto um cedo pode se treinar) nas armas. Possuía um totem-cobra, que ele cria ser seu espírito-guardião, um enviado menor do grande Elefante. Acreditava que a morte seria recompensada com um paraíso pós-vida para aqueles que seguissem seu deus e morressem lutando.

Já o 3°... bem, o 3° tinha fetiches muito, muito peculiares.

Mais, dia menos, acabaram se estranhando.

- Você! - acusou o 1° - Conspurcador da vida! Pára teus gestos assassinos e confronta a ira da natureza!
- Seu tolo cego (sic)! - respondeu o 2° - Você é que não compreende que a lei da natureza é a lei do mais forte!
- Corrige teus caminhos perante a Árvore!
- Árvore!? HA! A Grande Cobra é que me protege!
- A Árvore é que é mais forte!
- Nunca! É a Cobra!
- Árvore!
- Cobra!
- Árvore!
- Cobra!

Breve silêncio.

- Putaqueopariu que fedor é esse?!?!
- A Grande Bunda nos abençoou!
- AAAARGH que nojento!!
- Seguirei o seu exemplo, ó Sábia Bunda!

Som de peido fedorento do 3° cego.

- Caaralho, para com isso seu filho da puta nojento!

Soco.

- Ai! Idiota, não fui eu quem peidou, foi ele!
- Acha que me engana, hein, sua bicha fedorenta?

Outro soco.

- Ah, mas não vou aceitar isso de um hippie cretino!

Novo soco.

- Isso doeu seu desgraçado!

Mais um.

- Pára, porra, pára! Não sou eu que você quer acertar, eu sou o cara da bunda!
- É? Pensei que eu fosse o cara da bunda.
- Shhhh!
- Foda-se, bato em todo mundo! Cadê vocês?
- Irmãos! IRMÃOS!
- Bate o caralho!
- Parem, não vêem que é errado lutarmos entre nós?
- Ele começou!
- Não importa quem começou! Importa a causa, o motivo que nos levou a esta luta fútil, claramente o único culpado de tudo isso!
- Quem...?
- O elefante, lógico!
- Morte ao elefante!!!

Mas é claro que o elefante os esmagou a todos.

Crip

Tomei resoluções de ano novo. Resolução 1: escrever mais estórias. Resolução 2: aproveitar este blogue e publicá-las. Resolução 3: roubar personagens de outras estórias para fazê-lo; e outras que não são da sua conta, leitor.

Cristovam "Crip" Ramirez aparenta ser mais velho do que é, tem uma aparência austera e odeia que lhe chamem de Crip, o que o lembra de uma entre suas muitas grandes feridas na vida. Desde o dia em que aconteceu, nunca mais pôde sentir seu coração bater, usa preto, frases com negativas, gargalha uma gargalhada vazia. Está obcecado com o poder de alguma forma, escondeu seu coração por trás da gargalhada e uma armadura de placas, ou talvez seja um terno, ou ainda vários títulos pomposos como "Presidente Corporativo", "Consultor para Assuntos de Gerência Externa", "Andarilho das Dimensões" ou "Sumo-Sacerdote do Deus dos Mortos", e é de fato de algum jeito poderoso, em superfície, ou mesmo em profundidade, tem aí qualquer dinheiro, contato, influência, redes de traficantes de droga e mafiosos, prostitutas sob seu controle num gueto, numa favela do Rio, hordas de fanáticos espalhados pelos planos do multiverso, uma foice encantada, um toque gélido, essas coisas todas podem mudar de jeito mas não de propósito.

O que não muda é que Crip não sabe, ou sabe e não admite, que seu poder é, exacerbação do desejo semelhante de todos os seres humanos, fruto do MEDO! Crip é um medroso! Está encolhido em seu mundinho de poder e metendo-se em seu fardo de reverência pq tem MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO! é Um covarde e um fraco, alheio à força de verdade, o único poder q importa, de levantar-se novamente após cair. ele caiu pra sempre. ele vai viver com medo medo medo MEDO! de amar e perder de novo.

te lembra alguém?

5.1.05

Talento

Acabo de ler, de novo, um exemplar daquela frasesinha (frasinha seria melhor?) manjada do Drummond, ou qquer variável dela aplicável em qquer campo de ação humana desde que o filho da puta do Calvino botou seus planos diabólicos em movimento (e o engraçadinho pergunta, "quem seria a puta do Calvino?"): poesia é 99% traspiração e 1% inspiração. Dessa vez não era poesia, não, era pintura; qquer um resolve usar essa frase pra dar a impressão de que é um batalhador, de q deu tudo de si no q fez, etc.

Drummond crer q qquer um poderia alcançar seu talento munido apenas de força de vontade e dedicação é a maior tapada de sol com a peneira já registrada; não lhe aplico o rótulo de idiota, chamemo-lhe apenas vítima de seu tempo, como qquer um. O sonho da igualdade exige esse destino incerto, alterável pela vontade apenas, e não determinado pelos sinais do passado, uma linha q vai se alterando conforme o presente mas não ao léu, justa, dependente do mérito, uma justiça humana irreal, numérica, organizada, balanceada, igualdade esta que nunca vai acontecer, quebraria a mais certa lei da vida: igualdade é um porre; amolação não rende história e mesmo o porre tem q ter cabimento narrativo. Chamar o gênio de cagão - como foi feito nos comentários abaixo - é redundância, nascer com talento é uma cagada, nascer com as condições pra usar seu talento é mais cagada ainda, e ter facilidade pro esforço é talvez o melhor talento, uma cagada monstra, enfim, a injustiça por excelência depois, quem sabe, do amor. Uma beleza.

PS: a dependência da inspiração é evidente neste blogue, cujo número de postagens já declina. Como era? Uma beleza.

3.1.05

Parece Até Que Você Escreveu

"Os dois pararam ali no topo da colina e ficaram fitando o pôr do sol em silêncio, mãos dadas, depois abraçando-se, admirando as tonalidades que o céu generosamente partilhava com as nuvens, até que a escuridão e as estrelas tomassem o lugar no palco.

Nessa altura o rapaz cessou de olhar para o alto e permaneceu admirando, de perto, a moça; gravando as pequenas curvas de seu rosto, os relevos de sua mão, a altura do pescoço em que os cabelos principiavam a surgir e como, com as lufadas de vento, estes se desarranjavam. Ela sorriu levemente ao perceber isto:

- O quê? - ele indagou. - O que foi?!

Risos.

- O quê?!
- Eu é que pergunto! - diz ela, em meio às risadas. - Você fica aí, me olhando!
- Num posso?
- Pode, mas. Por que esse olhar todo, assim! Nossa, uma coisa toda, você parece que tava meditando!
- Meditando?!
- O que você tava olhando?
- Você.
- Não, sério!
- Tô sério, ué, eu tava olhando você, não era o que você perguntou?
- Não, é, mas.
- Mas o quê? É proibido, tem que ter autorização?

Mais risos.

- Não, não!
- Então pronto, resolvido, fico olhando você, não tem problema.
- Mas por que, garoto!?
- Como porque, porque você é linda, ora.
- Ai, seu brega!...
- Linda, linda, linda, linda...

Beijos.

- Não, mas sério. - ela recomeça. - Você tava pensativo. Pensando no quê?
- Nada.
- Não, fala sério!
- Em nada, assim.
- Ninguém pensa em nada.
- É, não, não era em nada.
- Viu?
- Era que. Tava pensando que, assim. Sou um privilegiado, um sortudo.
- Ah, é?
- É, pensa. Eu, você, aqui na colina, sozinhos, no fim do mundo, ninguém pra importunar, esse pôr-do-sol, essa coisa toda. Isso é maravilhoso. Parece que o tempo parou. Parece que.

O rosto dele muda nitidamente ao dizer isto. Está totalmente alterado.

- Parece que. Eu acho que nem mereço isso. Estar aqui com você é a melhor coisa do mundo, cada coisinha que você faz, você arrumando a cama, lavando o prato, correndo, tomando banho, é tudo lindo. E eu ficava sempre imaginando, pensando se ia ser assim, se você ia mesmo me dar qualquer bola, e se desse, se ia ser assim, eu tinha medo dessa intimidade porque sonhava tão alto com ela. Mas aconteceu e. E é, é isso, é bom, é ótimo mesmo, eu não preciso mais ter medo de não acontecer, eu. Eu não quero nunca mais sair daqui, vou ter que sair, mas não quero, todas essas coisas bregas que dizem, "quero que o tempo pare pra nós ficarmos juntos pra sempre", isso, eu. Parece verdade, agora, eu quero mesmo que o tempo pare. Eu não te quero longe mais um segundo, eu. Isso deve parecer muita idiotice minha.
- Não parece, não. É lindo. - ela o acariciou. - Parece até que você escreveu antes de dizer."

- É. - ele murmurou, e suspirou enquanto fechava o caderno. - Parece.