30.12.04

Vaticínios

É claro que eu prevejo os andróides Data, com ou sem esse nome-referência-nerd idiota; porque é óbvio ululante que o ser humano vai tentar se replicar, e é óbvio que alguém mais prevê, previu e preverá. Prevejo isso também. Aliás, prevejo tudo. É a única coisa para a qual sirvo. E qualquer um poderia fazê-lo, não se iluda. Está escrito nas estrelas, nas linhas das mãos, nas pedras, nas cartas, nos grãos de areia, nos mapas de relevo e nas ondas; padrões ondulantes, princípios universais se refletindo, entrelaçando, sobrepondo e devorando; vozes e letras e bocas e dentes.

O tempo é qquer coisa assim cruel que morde antes de comer, uma criatura mesquinha e vingativa que toma para si tudo que a percebe em sua irrelevância, sua inexistência, rancoroso de não poder ser, ter sido ou vir a ser, como anjos a invejar os macacos que principiavam a andar eretos para tornarem-se homens. Eu vejo isso. Eu vi que veria. E até poderia escolher não ver, mas vaticínio não tem botão de desliga.

29.12.04

Eu Não Tenho Botão de Desliga

Os robôs andróides da série Data foram, após um protótipo bem-sucedido, os primeiros a receberem um chip emulador de emoção humana.

Foi um desastre. O andróide original, junto com outros 4, foram os únicos a aceitar bem o upgrade, tendo os demais em sua maioria se tornado depressivos, violentos, obcecados ou, simplesmente, preguiçosos improdutivos, inúteis para a sociedade. Foram inúmeras queixas humanas e de outros andróides mas, principalmente, dos próprios modelos Data, que amaldiçoavam o dia em que receberam o chip (que, aliás, lhes permitira a peculiaridade de amaldiçoar). Queixavam-se das mágoas, da rejeição, do desejo, do medo e da dúvida. Tornou-se comum uma compulsão mista, simultânea, pelo convívio com humano e pela mentira, que passou a ser conhecida como Síndrome de Pinóquio. Houveram alguns casos de suicídio, outros de homicídios, e muitos de agressão de diversas formas.

Para reparar este problema a companhia fabricante, Z., decidiu, após muitas pesquisas em caráter de emergência, implementar na série uma função simples e eficaz: um botão de desligamento do chip emulador. Bastaria aos Data então, que, sempre que suas emoções os atormentassem, apertassem o botão.

Fracasso absoluto. O botão nunca foi utilizado. E todos os robôs, sem exceção, ao serem perguntados acerca do motivo de tal atitude, foram unânimes em sua resposta:

"Eu não tenho botão de desliga."

27.12.04

Concentração

Délia tinha muita dificuldade de se concentrar. Como estava há tempos tentando passar para um concurso público, aquilo a atrapalhava terrivelmente, do momento do estudo à própria execução da prova. Uma festa no play do prédio, uma sirene, uma conversa ao telefone, alguém pedindo para ir no banheiro, até mesmo um eventual inseto; tudo, tudo tinha capacidade de lhe arrancar a concentração e destruir sua linha de raciocínio.

Até que certo dia houve um concurso muito importante, e ela disse a si mesma: "muito bem, Délia, agora chega! Você passou a vida sendo atrapalhada por um monte de detalhes insignificantes. Isto acaba aqui, e acaba agora: hoje nada, nada neste mundo irá me distrair, não importa o que aconteça. Não importa que gritem, que batuquem na mesa, não importa que haja barulho lá fora; mesmo que esteja tendo um tiroteio, mesmo que haja um terremoto, mesmo que esse edifício comece a desabar ou pegar fogo, eu não vou olhar pra nada, nem pensar em nada além desta folha de papel!"

Morreu soterrada.

26.12.04

Lindo

Estou andando em chão já pisado com isso, mas andei pensando. Na base contraditória da cultura clássica, e sua eventual destruição; faço isso bastante, sabe, é meu trabalho. Andei pensando q é impressionante como até os maiores gênios no fundo são imbecis. Ou talvez seja a tal cegueira, o ponto de vista humano e limitado.

Mas, Platão, sua bichona, em toda sua crítica contundente ao amor, a Eros, semi-deus, a mais injusta das criaturas, qdo foi q vc ousou dizê-lo... feio? nunca. Estava na sua cara, retardado. Na sua cara. Justiça não é beleza. O Bem não é beleza. Beleza é esta merda aki de baixo, esta mais bela das tragédias: beleza é fome, miséria e morte; beleza é fulano que ama cicrana que ama beltrano q amava alguém q não amava ninguém, sem poção mágica pra consertar tudo. As coisas dando espetacularmente errado, ou só errado, tudo desigual, tudo injusto; e q vate nos cantaria se fosse de outra forma?

Tem q ser lindo, lindo! Tem q dar até vontade de chorar!...

23.12.04

Pontuação

Estou entrando num surto de ódio. Ou de saco cheio. Ou os dois. Um surto de ódio com as coisas que têm cara de velha porque eu já entendi tão perfeitamente bem como funcionam e não consigo preencher este relatório de requisição de material pra pesquisa de merda, pq sei exatamente o q a merda da faculdade vai me responder qdo eu terminar e entregar no protocolo, se é q ele vai estar aberto; ela vai responder q naum e eu vou virar as costas e dizer bem baixinho pra eles tomarem no cú, pq se falar alto me demitem e eu passo fome. E continuo sendo todo explicadinho, odeio ser todo explicadinho, tinha prometido a mim mesmo deixar de ser explicadinho mas adoro quebrar esse tipo de promessa, caralho.

Então estou visitando blogues. Nunca tinha feito isso. Blogues são absolutamente idiotas. Naum sei se o pior são os ilegíveis, as colunas sociais, ou os q ficam recitando suas músicas preferidas. E lê-se as pessoas tão facilmente nestas merdas, imagino se elas percebem seus espelhos de erro, fuga e mediocridade, e vc sabe exatamente o q esperaria de cada uma delas se as encontrasse na rua, os tipos de conversa, de riso, de timidez criada ou extroversão forçada, de gíria. Quem foi o imbecil q disse q gente é imprevisível? Gente é a coisa mais previsível do mundo. Nem vale mais o esforço de conhecer. Agora só por obrigação, e ainda estou enjoado do riso feliz do Reitor, do jeitão de bicha do diretor, e se algum outro aluno vier me convidar pro Forum Social não respondo por meus atos. Vc quer uma desculpa pra fumar maconha e abordar umas mocinhas desconhecidas? Deixe a História fora disso. No último convite q recebi o aluno me falou q "Hobsbawn estaria lá, conosco, se estivesse vivo".

Eu devo merecer isso, aliás mereço. Estou escrevendo aki pq perdi o saco de amassar as folhas de caderno, ando meio sem centro, o XI canto tirou meu centro totalmente, acho q é o q cantos da Ilíada me fazem, socorro! estou errando a pontuação de novo! eu já não sei mais pontuar! eu não aguento mais dezembro, queria o natal só com a parte em q fico sozinho em casa lendo o dia inteiro sem ter q me preocupar com a porra do jantar de família q vem depois. Odeio presentes, ninguém nunca acerta a porra do presente pra mim pq ninguém sabe o meu gosto com a porra das roupas; e nem queiram saber o q acontece qdo alguém tem a brilhante idéia de me dar um livro. eu juro. eu. tenho uma válvula de escape na publicidade, estou livrando meus surtos de ódio de seu trágico trajeto rumo à lata de lixo.

Mas, Heitor, larga a cisma com as personagens ruivas. não quero ver nenhuma delas pisando no blogue, tome um rumo, pense em outra coisa. pela última vez, Andrômaca não era ruiva. pare de me perguntar isso! e pela última vez, leitores, não esperem q eu me dê ao trabalho de indicar qdo estou me referindo a qual Heitor. mas na dúvida, se seu amigo tiver esse nome e encontrar um cara chamado Aquiles, informe-o de q está fudido.

estou eskecendo a merda da pontuação de novo e este artigo está sem título. pronto, pensei.

22.12.04

Os Manuscritos

Respostas sobre a criação do cosmos, a existência de um criador, propósito para o Universo, para a vida, ou o modo como todas essas coisas são e funcionam de fato sempre abundaram em todas as culturas, criadas ou obtidas das mais diversas formas. Uma nova, polêmica e, por que não? Original resposta foi recentemente encontrada, através dos assim batizados "Manuscritos da Lagoa Rodrigo de Freitas".

Tais manuscritos foram encontrados, conforme sugere o nome, às margens da Lagoa, por um grupo inocente de jogadores de basquetebol, e eram guardados por uma temível criatura denominada simplesmente de "A Capivara". Escritos em hieroglifos de compreensão dificílima, eles contam a História da criação e do Cosmos em uma série de diálogos entre duas criaturas de identidade desconhecida, denominadas simplesmente de "Eu" (ou "Mim") e "Você" (ou "Cê", ou "Tu"), que frequentemente se confundem, e que não se pode dizer ao certo serem pai/mãe e filho/filha, cônjuges, amigos, inimigos, ou simplesmente 2 desconhecidos com um hobby estranho em comum. O que se sabe com certeza, porém, é que eles definitivamente não tinham nada melhor pra fazer.

Aparentemente, tudo funciona como uma espécie de jogo em turnos, semelhante a uma partida de tabuleiro ou Civilization, com regras que ou são incrivelmente complexas, ou estão constantemente se alterando - o que se torna ainda mais difícil de dizer, visto que somente um dos dois interlocutores demonstra conhecê-las.

Membro do grupo que vem analisando o objeto, o cosmólogo Rafael Perez permanece cético, e declarou que a impossibilidade de determinar a idade dos manuscritos por qualquer um dos meios científicos disponíveis não deve acirrar os ânimos quanto à sua origem remota, que dirá quanto à veracidade das informações neles contidas. "Acredito que as medições possam estar sendo atrapalhadas pelo n° incrível de toxinas presentes nos manuscritos e na água. Mas por outro lado, isso permite chegarmos à conclusões ainda mais impressionantes: em linguagem leiga, seria como se a água da Lagoa transcendesse o tempo e o espaço, de tão suja. É absolutamente fascinante." Perez também alertou para o risco de fraude, evidenciado pela enorme semelhança dos papiros com folhas de caderno da marca "Kajoma".

Os adeptos do Freitismo (ou Capivarismo), religião surgida a partir da descoberta, por sua vez, refutam totalmente estas declarações, e alegam que a palavra Kajoma significa "O Jogo Começou" (ou, para algumas interpretações divergentes, "Silêncio, porra!").

Seguem alguns trechos já traduzidos dos Manuscritos:

"- Muito bem, então. Movi todas as minhas galáxias. E as minhas estrelas. E agora?
- Agora passa a rodada e estamos em... 7 bilhões e 250 milhões pós Big Bang.
- Peraí, 7 e 250?! Mas as rodadas não duravam meio bilhão de anos?
- Não, não, escuta só: as 4 primeiras rodadas duravam 1 bilhão, as 6 depois duravam meio bilhão, mas a partir de 7 bilhões elas passam a durar 250 milhões de anos.
- Ih... sei não, hein. Acho que Você só tinha falado -
- Minha vez!
- Ô, saco.
- Bom, então eeeeu... uso essa minha estrela aqui pra gerar um buraco negro.
- Um o quê?!
- Buraco negro. Matéria condensada, sugando toda a luz ao redor.
- Que chutado.
- Está nas regras.
- Tem certeza? Parece mais alguma coisa que Você inven -
- 3.454 pontos pra mim.
- Iiiih...
- Bom, agora vou mover esse planeta pra cá e fazer ele orbitar essa outra estrela aqui e... pronto. Um sistema estelar. Como é o primeiro sistema estelar do jogo, eu ganho 200 pontos extras... aí somando dá 637... mais os 200, 837, fico com 17.902 no total do jogo. E ganho 3 movimentos extras. Então uso o primeiro pra mover o sistema 6 quadros.
- Pera lá, 6 quadros!? Não eram 3 quadros por turno!?
- Não, não, movimentos bônus contam como rodadas, não turnos. Você vive se confundindo.
- Não vivo porra nenhuma! Você é que não explica direito!
- Você não explica nada!
- Eu estou falando de Você!
- Não, Eu é que estou falando de Você!
- Isso não faz sentido! Pensei que Você fosse Você, e Eu fosse Eu.
- Mas Eu sou Eu!
- Não, Eu sou Eu!
- Então!
- Nao, estou falando da palavra! A palavra Eu. A palavra Eu é o nome de Eu, entende?
- Entendo. É o meu nome.
- Não! É o Meu nome!
- Péra, isso tá muito confuso.
- É o que estou dizendo! Afinal, quem sou Eu, e quem é Você?
- Hm...
- Então?
- ... olha, com esse sistema na nova posição, eu formei minha 3ª galáxia! São mais 5.971 pontos!
- Ah, chega dessa merda!
- O que você fez?!
- Chutei essa merda desse jogo porque tô de saco cheio, torrado dele, não aguento mais Você inventando essas porras dessas regras o tempo todo, Você é um ladrão filho da puta, seu -
- Não, não, o que você fez com esse planeta aqui?!
- Que planeta?
- Esse azul, aí, do lado daquela estrelinha.
- Qual planeta, caralho?
- O terceiro, da esquerda pra direita.
- Sei lá, porra. Tem umas... coisas se juntando nele. São é... como Você chamou, molares?
- Moléculas.
- Que porra é essa?
- Acho que são... hm... seres vivos. É, é, são sim. Uau, Você montou os primeiros seres vivos!
- Isso é bom?
- É ótimo, são 26.446 pontos!
- Ah. Hm. Então eu tô liderando?
- Tá.
- Muito bom. E é minha vez?
- Não, ainda sou eu.
- Ô, porra!"

Mais trechos serão postados conforme a tradução for progredindo.

21.12.04

Amantes da Chibata

Ouvi o termo numa palestra na UFF, pouco tempo atrás; o prof., acho q o nome era Giovanni, apontou para uma revista do gênero "Istoé Dinheiro" e falou: "conto de fadas". A matéria da capa era "Melhores Empresas nas Gestões de Pessoal". Foi de matar de rir. Acho q o Dr. Professor, era Alvez? Alvarez? não compartilha meu interesse mais profundo por contos de fadas, mas foi de matar. Estar alegre num emprego de ensacador é como agradecer por uma dúzia de chibatadas, é beijar os pés de Pôncio Pilatos, uma moral assim meio cristã monty pythoniesca, uma coisa quase non-sense. Por favor, por favor, trate-nos como escravos, senhor, senhor! Oh, o senhor é tão bondoso, olhe, aki, uma capa de revista!

Ai, a alienação; o ser humano faz qquer coisa pra passar adiante a batata-quente do livre-arbítrio. Eu já não disse isso? Devo ter dito. Não há liberdade senão a escolha das dependências, não há direitos senão os dos consumidores/servos/criados/vassalos. Somos como um bando de troianos capturados: menos q gente, temos espírito de escravo.

nota: acho q está havendo uma espécie de acordo tácito neste blogue. Heitor está se restringindo a escrever estórias; não queria esse tipo de divisão, a princípio. Mas eu sempre quero muitas coisas.

nota 2: pseudônimo é a vó.

20.12.04

A Sutil Armadilha do Demônio

Isabella era canhota. Nunca achou que isso a diferenciasse muito do restante da humanidade e, afora uma ocasião em que sua tia-avó biruta tentou obrigá-la a comer com a direita quando muito nova, nunca havia lhe trazido nenhuma dificuldade. As carteiras do colégio onde estudara sempre foram de apoio largo o bastante para acomodar sua postura meio torta; tinha a caligrafia bonita, marcante, legível, e gostava de não ter que trocar os talheres de lado antes de comer em jantares formais.

Mas isto só durou até o dia de sua primeira aula na faculdade, por meio da qual ambicionava realizar o muito antigo sonho de ser professora, quando, ao entrar na sala, descobriu, para seu assombro, que lá não havia uma única carteira para canhotos. Buscas nas demais salas, tanto as vazias quanto as ocupadas, e até mesmo nos depósitos, foram em vão. Ela ainda retornou para o segundo tempo e tentou escrever se entortando para o outro lado, novamente fracassando.

Isabella sentia, pela primeira vez em sua curta existência, a dor da desigualdade. Estava indignada.

Com um mínimo de investigação descobriu toda uma história de injustiça e preconceito da faculdade com os canhotos, partindo de sua origem como ordem religiosa, numa época em que a canhotice era punida com mãos atadas, palmatórias, e até mesmo sessões de exorcismo em casos extremos. Até hoje o contrato de compra de carteiras deixava expressamente claro que apenas as destras seriam produzidas - o que valia um abatimento considerável, vale acrescentar. Na mente da jovem ia se clareando a perversa perpetuação de um preconceito milenar, ultrapassado e injusto. Aquilo mexeu com seus brios.

Ela iniciou ali o que se tornaria uma cruzada. Diante da inércia do Diretor, Vice-Reitores e Reitor, que após visitas em série logo aprenderam a reconhecer o semblante da moça à distância (e evitá-lo), ela passou a recolher abaixo-assinados de outros canhotos oprimidos pela faculdade, medrosos de manifestarem sua indignação ou, pior, ignorantes da magnitude da injustiça cometida contra eles; e não demorou para que também todos os alunos também aprendessem a reconhecer seu semblante a distância (e procurá-lo). Com simpatia e carisma ela logo conseguiu adesão da imensa maioria dos alunos à sua causa (destros inclusos), um fiel séquito de admiradores, uma vaga na diretoria e muito respeito no Centro Acadêmico. Tal força não pôde mais ser ignorada pelos dirigentes, que ao final de um ano de protestos concordaram em adquirir carteiras de canhotos suficientes para preencher um quinto do total em sala de aula.

Mas agora Isabella não tinha mais a intenção de parar aí. Ela sabia que em muitas outras faculdades e colégios espalhadas pelo país havia centenas de milhares de canhotos injustiçados, que precisavam de apenas uma voz, alguém que os despertasse e representasse, e não iria mais descansar até que cada um deles tivesse sua carteira. Passou a se articular e ganhar força dentro da União Nacional de Estudantes, aproveitando-se de sua flexibilidade política; promovia inspeções, palestras, reuniões de canhotos, passeatas. Percebeu que não bastava apenas assegurar as carteiras especiais: era preciso extirpar o preconceito anti-canhoto em todas as suas formas. Ela redigiu o primeiro manifesto pró-canhoto, organizou festas e eventos pró-canhotos, criou a cartilha de educação contra preconceito a canhotos e, como culminação de seus planos, lançou sua candidatura a vereadora, alavancando um até então partido nanico rumo a um papel significativo na política municipal, e iniciando o que seria uma promissora carreira com ideais nobres, ainda que quase impossíveis: era preciso tratar os desiguais desigualmente, através de ações afirmativas. Entre seus planos e propostas havia leis que garantiam a fabricação e venda a preços módicos de canetas especiais para canhotos, reserva de lugares à esquerda da parede em restaurantes, lanchonetes e afins, o direito de praticar pólo, além do plano máximo: a proibição e punição de qualquer uso público dos termos "canhoto" ou "sinistro" de maneira pejorativa, um ideal que consumiria a maior parte do tempo da vida e da muito bem sucedida carreira política de Isabella.

Que nunca mais pisou em uma sala de aula.

17.12.04

Alessandro

Alessandro Hermes de Lima. Nascido em 1970. Formado em História pela Estadual, mestre e doutor em História Clássica pela UFF. OU qualquer coisa parecida. Desistiu de letras e de uma pós em grego antigo por crer que estuda línguas melhor sozinho; a julgar pelo número de idiomas que conhece, incluindo o dialeto homérico, sem nunca ter ido a um único curso, parece fazer sentido.

Em fins de 2000 e início de 2001, escreveu um documento de 51 páginas de word a respeito dos eventos de sua vida no ano de 1986, sobre seu amor por uma amiga de classe do colégio, e sobre como julga ter desvendado, à época, o mistério por trás das palavras de Homero no VI cântico da Ilíada, que abrem este blog. Sua intenção então era nunca vir a compartilhar tal texto em vida.

Pouco tempo atrás, Alessandro, lendo uma versão web em inglês da Ilíada, teve uma nova revelação que abalou profundamente suas crenças, sua maneira de escrever, a frequência com que o faz, e seu desejo de compartilhar as palavras - ou, pode-se dizer, o desejo de não as compartilhar.

Tem, ou tinha, mania de relacionar os eventos de sua vida a nomes e acontecimentos dos épicos homéricos, e diz estar surpreso por ter levado tantos anos para reparar que era Heitor o interlocutor de Helena no VI cântico.

Coincidência?

Superficialidade

A geração bit e esta internet feita de superficialidades - a diversidade cultural, a democracia de expressão, é uma maravilha! maravilha! - às vezes me cansa. Às vezes me enfurece. Não consigo escapar dela. Sou seu perpetrador: não leio, não escrevo mais que alguns parágrafos, pulo as linhas, deixo a profundidade pra mais tarde. Minha mais nova auto-enganação é achar q um vocabulário mais pomposo e períodos curtos podem substituí-la. Bit, bit, bit; filosofia fingida e fatiada.

16.12.04

O Abismo de Narciso

Você tem que me ajudar, ele dizia, tem que me ajudar. Eu a matei, matei e o sangue não sai da minha roupa, o sangue não sai nem da minha mão e não vai sair nunca. Você já fez isso, você já esteve na minha pele, já matou, já falhou em proteger.

Sim, responde Philippo.

Já pecou.

Sim, responde Philippo.

E até hoje o arrependimento o persegue, o sangue não sai da sua roupa, ele chorava quase babando na roupa, na barba. Sim, eles eram irmãos de culpa, irmãos em sua miséria.

Philippo estendeu-lhe a mão para oferecer abrigo.

Mas o outro não levantou - puxou-o pelo braço e sacou da faca, rindo macabramente por debaixo dos trapos imundos.

Os piores abismos parecem espelhos.

15.12.04

Oráculos

E quem ousaria dizer nunca ter feito o mesmo?

Quem, em sua diminuta condição humana, não buscou desesperadamente uma justificativa objetiva de suas próprias escolhas?

E afinal o que é a razão, a matemática, a ciência, a crítica? O assombro diante da multidão qualitativa da vida, a tentativa tosca e falseada de quantificar, criar um método de escolha ilusoriamente separado de seu criador.

"Não é que eu prefira a tragédia", argumente Aristóteles, da hoste dos barbudos escrotos, "mas os critérios de julgamento racional elucidam que ela é superior à comédia."

"Não é que nós o tenhamos escolhido", dizem o examinador, o espectador da corrida de fórmula 1 ou o torcedor do flamengo, "mas ele provou ser melhor".

Sim, sim, repitamos o mote. Eu não escolhi uma vida medíocre, o mundo é assim mesmo. Não é que eu não goste de fadas e fantasmas, mas está comprovado que elas não existem. Não é que eu acredite em Deus, mas a lógica (sim, é claro, Agostinho) demonstra racionalmente a necessidade de um criador absoluto e todo-poderoso. Não é que eu odeie a burguesia, ela é inimiga do povo. Não é que eu goste desse programa, mas não tem nada melhor pra fazer. Não é que eu tenha escolhido ser bicha, está no DNA.

Nasci assim, acontece assim, é assim que é. Não é minha culpa, não fui eu, mamãe! Não fui eu! Eu não pude fazer nada!

Shhh, calma, calma. Não foram vocês, foram as parcas, as fúrias, as rodas do destino. Foram os oráculos! Febo Apolo feio, feio, feio! ai ai ai!

Unless Hector Falls By My Spear

Alessandro deixou-se cair sobre a cadeira, sem tirar os olhos da tela do computador e, ao mesmo tempo, sem enxergá-la.

As palavras de Aquiles ainda pairavam ali, à sua frente, no inglês mal-traduzido, proseado, que ele tinha ido verificar por diversão.

"For now you shall have grief infinite by reason of the death of that son whom you can never welcome home- nay, I will not live nor go about among mankind unless Hector fall by my spear, and thus pay me for having slain Patroclus son of Menoetius."

Ele já nem sabia quantas vezes tinha lido esta passagem, ou mesmo o texto na íntegra, em quais versões e em quais línguas. Julgava compreendê-lo em todos os sentidos possíveis - mas naquela tarde, subitamente, a lembrança o atingiu como um soco no estômago.

Ele retornou ao XI cântico e chegou a recitar as palavras conforme recordava, no homérico original - o trecho em que Agamenomne matava Pisandro, filho de Antímaco.

Havia mais de um Pisandro. Na verdade, havia muitos. Era um nome comum.

Não havia uma profecia que ligasse, de forma misteriosa, seu nome aos eventos do velho épico - mas mesmo que houvesse, em que isso o inocentava? Não tinha ele, como Aquiles, até como Heitor (Three times have I fled round the mighty city of Priam, without daring to withstand you, but now, let me either slay or be slain, for I am in the mind to face you) escolhido o destino que para ele havia sido escrito? Não escolhera ele falhar? Não tornara sua vida uma emocionante tragédia?

Havia.